Há meses que os grupos etários mais atingidos, essencialmente adultos jovens, associado ao risco geral acrescido, deveria determinar, em empresas e outras organizações, a “antecipação” da acção (é isso a prevenção!) não só pela aglomeração de pessoas, mas também pelas deslocações e partilha de ferramentas ou outros objectos.
Por António de Sousa Uva *
As crianças até ao 1º ciclo voltaram às escolas, a variante inglesa já é totalmente dominante, mesmo com o recente confinamento, e a estratégia passa por testar periodicamente, isolar e tratar e por vacinar (nada de novo, apenas a expectativa se tal será ou se irá sendo?). Interessantemente nas empresas com risco geral acrescido que mantêm a nossa vida em sociedade (v.g. electricidade; abastecimento de água; comunicações; fabrico de alimentos; resíduos domésticos; transportes; comércio de bens vitais) essa acção não foi tão enérgica.
Recentemente, noutras situações, terá começado a ser evocado o que, aparentemente, se passou a denominar “resiliência do Estado”?
Será muito interessante reflectir sobre o que estará na origem de critérios, aparentemente tão díspares. Uma coisa parece certa, não terá, seguramente, nada a ver com “quem não chora não mama” nem com a perpetuação das desigualdades de “quem chora mais alto”.
Ainda agora, no final de março, raramente é noticiado qualquer surto em fábricas, com raras excepções como foi o caso de cerca de quarto dezenas de trabalhadores infectados de uma unidade fabril em Rio Maior, correspondendo a cerca de um quarto da totalidade dos trabalhadores. O presidente da Câmara Municipal de Rio Maior (Santarém), Filipe Santana Dias, terá dito aos jornalistas que o surto foi detetado na sequência da realização de testes na unidade fabril. Fica por conhecer a origem e os contornos desse rastreio.
Terá havido alguma política de testagem periódica e regular em fábricas?
Terá sido iniciativa de quem tem autoridade pública nessas matérias?
Terá essa testagem sido de iniciativa empresarial? municipal? das autoridades de saúde?
Terá havido uma boa articulação dos Serviços de Medicina do Trabalho (se existentes, ainda que há muito obrigatórios, legalmente) com a estrutura pública de resposta à pandemia?
Terá uma tal contingência sido baseada no princípio (sempre oculto) muito frequente do “não complique, depois logo se vê”?
Terá a resposta sido do género “se houver fogo, manda-se lá os bombeiros”?
É que já há meses que os grupos etários mais atingidos, essencialmente adultos jovens, associado ao risco geral acrescido, deveria determinar, em empresas e outras organizações, a “antecipação” da acção (é isso a prevenção!) não só pela aglomeração de pessoas, mas também pelas deslocações e partilha de ferramentas ou outros objectos. Noutras actividades o critério foi totalmente diferente, inclusivamente com vacinação na primeira fase! Vá-se lá compreender tais critérios sem recorrer a aspectos que estarão, por certo, muito para além do conceito de risco.
Há mesmo situações de risco geral acrescido em que, tudo leva a crer, apenas uma parte dos trabalhadores é vacinado prioritariamente, ocorrendo algo não escrutinável equivalente, por exemplo, a num hospital vacinar médicos e não vacinar os outros profissionais implicados na prestação de cuidados. A ser verdade, insondáveis os critérios para a hierarquização de risco adoptada.
Estranhos e insondáveis, igualmente, os raciocínios que estão na origem dessas decisões … É muita intempérie para quem necessita que os cidadãos participem como “agentes de Saúde Pública” ou será apenas o velho princípio de que “há uns mais iguais do que os outros”? Não creio que assim possa ser, mesmo no contexto de “uma manta tão curta” na disponibilidade de vacinas!
* Médico do Trabalho, Imunoalergologista e Professor Catedrático de Saúde Ocupacional da ENSP (UNL). Artigo publicado originalmente no site Healthews.pt