A proteção da floresta assenta nos vigilantes que detetam pequenos incêndios, passíveis de ser apagados pelos sapadores florestais: estamos a falar dos serviços operativos de saúde pública, dirigidos por autoridades de saúde (delegados de saúde).
Por Lúcio Meneses de Almeida *
A evolução da pandemia de COVID-19, em Portugal, veio reacender a discussão em torno da efetividade das medidas de saúde pública. Refiro-me, em concreto, às de âmbito populacional. A sua fundamentação assenta, em todos os casos, no conhecimento da dinâmica epidémica.
As epidemias são, na sua história natural, como os incêndios. O combustível são os suscetíveis; enquanto existir em quantidade suficiente, o fogo manter-se-á ativo. E será tanto mais intenso (e mais rápido na sua progressão) quanto maior a densidade da floresta/carga de combustível.
As clareiras e os corredores não arborizados em torno de uma floresta são, por analogia, o correspondente ao cordão sanitário implementado nas quarentenas geográficas: como não há entrada de combustível (suscetíveis), o incêndio vai acabar por se autoextinguir. Simultaneamente, como não há projeção eficiente de “fagulhas” (saída de doentes/infeciosos), previne-se a sua propagação para zonas contíguas, evitando-se um incêndio de grandes proporções.
E uma vez ardida, a floresta não vai arder mais. Pelo menos enquanto não ressurgir… Ou seja, enquanto se mantiver a imunidade de grupo – seja por infeção, seja por vacinação – a população fica protegida contra novas epidemias por essa doença.
Nas doenças transmissíveis evitáveis pela vacinação, como é o caso do sarampo, de muito maior infecciosidade do que a COVID-19, se baixarmos a guarda, não garantindo ativamente a cobertura vacinal necessária, acumulam-se suscetíveis e as epidemias voltarão a ser uma realidade…
Falar em imunidade de grupo – literalmente, “imunidade de manada”, do Inglês “herd immunity” – é falar em presas e predadores. Os predadores rondam as manadas, na expetativa de que uma cria, ou um adulto mais fraco, se destaque.
As crias (suscetíveis) encontram-se protegidas pelo grupo enquanto nele permanecerem e desde que o número de adultos vigorosos (imunes) seja o suficiente. Este número – ou, mais precisamente, proporção (“limiar de imunidade de grupo”) – está relacionado com a infecciosidade da doença (R0).
Voltando aos incêndios florestais, quando não é possível identificar os “incendiários” (casos que originaram outros casos), apesar dos esforços empreendidos, e quando os bombeiros já não conseguem acorrer a tantos fogos, a conduta mais racional é o “deixar arder”, controladamente, concentrando a resposta nos incêndios de maiores dimensões.
A estratégia de combate é, então, redirecionada para a mitigação dos seus efeitos, mediante a salvaguarda de vidas e bens.
Não obstante se observar uma incidência de COVID-19/SARS-CoV-2 superior à de outros países com um padrão de transmissão generalizada, Portugal consta, no relatório de situação de 27 de janeiro, da OMS, como apresentando uma transmissão por “clusters” (pequenos fogos).
Enquanto tal se verificar, ou for possível afetar recursos, há que quebrar cadeias de transmissão, prevenindo casos secundários de infeção, mediante o isolamento dos doentes e a quarentena dos contactos. Importa, no entanto, definir o momento em que se passará para a fase de mitigação. E, acima de tudo, retirar ensinamentos para o futuro.
A proteção da floresta assenta nos vigilantes que detetam pequenos incêndios, passíveis de ser apagados pelos sapadores florestais: estamos a falar dos serviços operativos de saúde pública, dirigidos por autoridades de saúde (delegados de saúde). Serviços que, na última década, foram desprezados nos recursos afetos e depreciados na sua relevância.
Mas falar em proteção e promoção da saúde é falar, primordialmente, no cidadão. É a este que incumbe, acima de todos os outros atores, zelar pela sua saúde e contribuir para a saúde da sua comunidade.
Uma das formas consiste em aderir à vacinação, quando preconizada, sem reservas mentais ou receios infundados. Entenda-se, não recusando e não promovendo a recusa vacinal, mediante a difusão de rumores ou de pseudociência negacionista. E cumprir, em especial em contexto epidémico, as orientações das autoridades de saúde.
Automobilisticamente falando, encontramo-nos a circular a uma velocidade muito elevada, numa descida extraordinariamente íngreme e vislumbrando uma curva particularmente perigosa. Travar a fundo, é a única solução.
Mas já não basta travar com o pedal; temos que travar, também, com o motor. Motor que, tragicamente, corresponde ao tecido económico e produtivo… Ou seja, “confinar”.
A vantagem deste segundo período de confinamento generalizado (lockdown), relativamente ao de março do transato ano, é que, além do pool de recuperados entretanto constituído, dispomos de vacina, ainda que em quantidade insuficiente. Será, portanto, produtivo. E tanto mais produtivo quanto mais portugueses forem vacinados.
Há, pois, que vacinar, rapidamente e em força, sem esquecer que as medidas de saúde pública são como os medicamentos: o resultado clínico depende do cumprimento da dose prescrita e da duração do tratamento.
Não podemos cair na tentação de interromper medidas, mesmo que parcialmente, logo que se traduzam no resultado pretendido – ou, pior ainda, assim que configurem uma desaceleração epidémica.
Qualquer retirada terá que ser avaliada no seu impacte potencial. E pressupõe um reforço dos meios afetos à fiscalização das medidas remanescentes e, primordialmente, à vigilância epidemiológica.
Uma coisa é certa: até alcançarmos a imunidade de grupo para a COVID-19, o perigo de novas ondas pandémicas será uma realidade.
* Presidente do Conselho Nacional de Ecologia e Promoção da Saúde da Ordem dos Médicos. Assistente Graduado de Saúde Pública. Artigo publicado originalmente no site Healthnews.