A economia circular não é uma novidade. Embora seja um conceito bastante abordado nos dias de hoje, era uma prática diária no tempo dos nossos avós, sobretudo em meio rural, em que se aplicava, de forma natural e óbvia, a velha máxima do pai da Química, Lavoisier: “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Por Rute Candeias *
Os tempos eram difíceis e o desperdício era quase zero. As poucas sobras das refeições ou da confeção dos alimentos eram distribuídas pelos animais ou íam para a pilha de composto para voltar a adubar a terra. Ainda o plástico era uma novidade, mais comum no meio urbano, e as merceariaseram aviados a granel, em pacotes de papel manteiga, onde também se embrulhava o bacalhau, o fiambre ou o chouriço. As bebidas eram vendidas em garrafas de vidro que eram guardadas religiosamente para se devolver à procedência e recuperar o valor do vasilhame; e o pão era colocado em sacos de pano que cada freguês levava consigo. O calçado era reparado no sapateiro, a roupa era arranjada na costureira e reutilizada pelos vários membros da família.
Desta forma vivia-se em maior harmonia com os ciclos da Natureza, com algumas carências, mas sem excessos. Sem excessos de consumo e sem excessos de desperdício, inclusive alimentar.
Hoje em dia, estima-se que o desperdício alimentar, a nível mundial, atinja valores absurdos que correspondem a cerca de 1 terço do que é produzido, com a agravante que muitos destes resíduos terminam os seus dias em aterros sanitários, onde ficam estagnados, ocupam espaço e não são aproveitados. Segundo os últimos estudos, cada português desperdiça, por ano, cerca de 100 quilos de alimentos, mas em Portugal, cerca de um milhão e 600 mil pessoas vivem abaixo do limiar da pobreza e 360 mil têm carências alimentares. Ironicamente, embora já consigamos criar intiligência artificial e fazer viagens privadas ao espaço, continuamos a não conseguir resolver o problema do desperdício alimentar da fome no mundo.
Com uma grande parte da população portuguesa a viver em centros urbanos, onde os terrenos agrícolas, as hortas e os quintais deram lugar a estradas e à construção, os resíduos resultantes da alimentação, terminam a sua vida no aterro sanitário. Desta forma, interrompe-se o ciclo da matéria orgânica e os nutrientes, tão necessários ao enriquecimento do solo, perdem-se. Por outro lado, estes resíduos vão contribuir para o agravamento do problema das alterações climáticas devido à consequente emissão de gases com efeito de estufa.
Os biorresíduos fazem parte do nosso dia-a-dia. Estão presentes sempre que preparamos os alimentos para fazer uma refeição e quando deitamos fora os restos de comida. Compõem, em média, quase 37% do nosso caixote do “lixo comum”. Ao degradarem-se, causam maus-cheiros; a mistura com outros materiais (p.ex. embalagens, papel e cartão, têxteis), que muitos ainda colocam no lixo comum, contaminam e dificultam a separação nas linhas de triagem; e, acima de tudo, representam a perda de um recurso importante – nutrientes – que podiam ser encaminhados para os solos agrícolas e florestais nacionais.
Para tentar reverter esta situação, têm sido preconizadas várias estratégias que visam promover a economia circular, a separação dos biorresíduos e a prática da compostagem, quer a nível doméstico, quer a nível industrial.
Num dos documentos estratégicos publicados, o PERSU 2030, pode-se ler que, até 2030, Portugal deverá cumprir a meta de reciclagem de 60% dos resíduos urbanos. Este é um valor difícil de atingir, uma vez que em Portugal há 20 anos que não passamos dos 19%.
Por outro lado, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030, o ODS 12 (Produção e Consumo Sustentáveis), propõe um conjunto de medidas relevantes no âmbito do presente Plano, com um horizonte temporal até 2030, de onde se destacam:
– Reduzir para metade o desperdício de alimentos per capita a nível mundial;
– Reduzir substancialmente a geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reutilização e reciclagem.
Como resposta às alterações climáticas e à degradação do Ambiente, foi ainda apresentado pela Comissão Europeia, em dezembro de 2019, o Pacto Ecológico Europeu – PEE (European Green Deal), com o objetivo de transformar a União Europeia (UE) numa economia moderna, eficiente na utilização dos recursos e competitiva, e, por isso, fundamental para executar a Agenda 2030 e os ODS.
Um dos principais alicerces do Pacto é o novo Plano de Ação para a Economia Circular (Circular Economy Action Plan – CEAP), publicado em março de 2020, um roteiro para um crescimento sustentável, que propõe medidas a aplicar ao longo de todo o ciclo de vida dos produtos, com o objetivo de preparar a economia para um futuro verde, de reforçar a competitividade (mantendo a proteção do Ambiente) e conceder novos direitos aos consumidores.
Com base nos trabalhos realizados desde 2015, ano de publicação do primeiro CEAP, o novo CEAP centra-se nas fases de conceção e produção numa economia circular, a fim de garantir a manutenção dos recursos no sistema de produção e consumo durante tanto tempo quanto possível, designadamente através de medidas em sectores com potencial de circularidade elevado (eletrónica, embalagens, plásticos, alimentos, têxteis). Outra das ações principais do PEE é a Estratégia “do prado ao prato”, que visa criar um sistema alimentar justo, saudável e amigo do Ambiente, que preconiza, designadamente, a necessidade para a redução das perdas alimentares e estímulo aos circuitos curtos de produção e consumo, ou o incentivo à regeneração de nutrientes e matéria orgânica do solo.
Ao avançarmos para a recolha e valorização dos biorresíduos, estamos a reduzir a nossa dependência de aterros sanitários e inceneradoras, a descarbonizar a sociedade, a otimizar a eficiência da reciclagem de embalagens e cartão, a reduzir a utilização de fertilizantes sintéticos e a promover a melhoria de qualidade do nosso solo. Enquanto a compostagem doméstica é praticada com maior frequência nas zonas rurais, nos meios urbanos a compostagem industrial por digestão anaeróbia já é uma realidade em algumas centrais de gestão de resíduos e permite a produção de grandes quantidades de composto e ainda a produção de biogás com aproveitamento para a rede elétrica nacional.
Os decisores políticos e o poder local em particular, enfrentam, assim, o desafio de criar estratégias e metodologias realistas e execuíveis que promovam a economia circular da matéria orgânica na sociedade. Falamos, por exemplo, da recolha seletiva porta-a-porta, da distribuição de compostores domésticos, da instalação de compostores comunitários e da organização de ações de formação e sensibilização nas escolas e junto dos munícipes. Para que isto seja uma realidade, é importante envolver os cidadãos, sensibilizá-los para a importância da valorização dos biorresíduos e as vantagens que isto representa para o Ambiente, a Economia e a população em geral.
Convicta que esta é uma questão ambiental de extrema importância que carece do envolvimento da sociedade no seu todo, a Associação Portuguesa de Educação Ambiental – ASPEA, tem vindo a desenvolver projetos, programas e ações de educação ambiental nestas matérias que visam sensibilizar, formar e informar os cidadãos, agentes de mudança na prossecução da economia circular.
* Associação Portuguesa de Educação Ambiental (ASPEA), Coordenadora do Programa EducOceano e Bióloga Marinha e Educadora Ambiental. Artigo originalmente publicada no site Essência do Ambiente.
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