
O Supremo Tribunal de Justiça voltou a pronunciar-se sobre o conceito de acidente no percurso casa-trabalho, também dito acidente de trajeto ou, mais rigorsamente, acidente in itinere (aquele que ocorre fora do local e do tempo de trabalho, mas durante o percurso “casa-trabalho” normalmente utilizado pelo trabalhador para se deslocar entre a sua residência e o local de trabalho, ou vice-versa) reiterando uma interpretação consistente com o sentido teleológico das normas do Código do Trabalho.
Por Rui Borges Pereira *

Desta feita, este tipo de acidente de trabalho foi abordado no recente Acórdão daquele Tribunal, a propósito dos acidentes que continuam a contender com a relação laboral, ainda que ocorridos fora do local de trabalho.
O caso:
Em causa estava o reconhecimento de um acidente ocorrido durante o percurso de regresso a casa de uma trabalhadora, após o término do seu horário de trabalho.
Em termos breves, a complexidade prendia-se com o facto da trabalhadora ter caído no autocarro, a caminho de casa e depois de ter parado para fazer comprar uma toalha de mãos, acabando por perder um rim.
O STJ confirmou a decisão da Relação de Lisboa que qualificara o evento como acidente de trabalho. A sinistrada, que habitualmente utilizava o autocarro como meio de transporte, decidiu interromper o trajeto para satisfazer necessidades pessoais: parou numa loja para comprar uma toalha e permaneceu cerca de vinte minutos ao telemóvel, antes de seguir para um supermercado onde adquiriu bens para o jantar. Retomado o percurso habitual, sofreu uma queda dentro do autocarro, em virtude de uma travagem súbita.
Os fundamentos:
A questão essencial discutida foi a compatibilidade destas interrupções com o conceito de “trajeto normalmente utilizado” e a sua eventual descaracterização como percurso protegido, ou seja se este ficaria fora do reduto de risco inerente ao contrato de trabalho.
O Supremo reiterou a orientação já consolidada: o acidente in itinere é uma extensão da proteção legal, justificada pelo risco inerente à deslocação para ou do local de trabalho. Esse risco, embora extrínseco ao local e horário de trabalho, encontra-se funcionalmente ligado à execução da prestação laboral.
Na análise do caso concreto, o Tribunal valorizou a razoabilidade do comportamento da trabalhadora e a natureza das interrupções — consideradas consentâneas com as exigências da vida familiar e com padrões normais de organização pessoal. Entendeu-se, assim, que os desvios não eram desproporcionados, nem descaracterizavam o percurso como normal. Mais: uma vez retomado o trajeto habitual, o risco de deslocação regressa à esfera da tutela legal.
Conclusão:
Este entendimento é particularmente relevante no contexto atual, em que as deslocações a pé e os comportamentos multifuncionais no quotidiano laboral são cada vez mais comuns. A decisão do Supremo confirma que a análise de cada caso deve assentar em critérios de razoabilidade e adequação social, e não numa leitura estritamente literal da norma.
Para quem atua “nos Tribunais de Trabalho”, em especial para os Advogados, este Acórdão reforça que o conceito-chave é, efetivamente, o da “razoabilidade”.
Já para empresas e entidades com responsabilidade na gestão de recursos humanos, este acórdão reforça a importância de conhecer os contornos legais do regime de acidentes de trabalho, incluindo os que ocorrem fora do local habitual de laboração. É que, a correta qualificação destes eventos pode ter implicações relevantes em matéria de responsabilidade e deveres de cobertura por parte das seguradoras, das empresas e empregadoras.
* Advogado Cofundador da CBA Legal Advisors.
Ressalva legal: O presente artigo é meramente informativo e o seu conteúdo não pode ser considerado como prestação de serviços ou aconselhamento jurídicos, de qualquer natureza. Este artigo é, por natureza, genérico, abstrato e não é diretamente aplicável a qualquer caso concreto, pelo que não dispensa a consulta de um profissional devidamente habilitado, não devendo o Leitor atuar ou deixar de atuar por referência ao seu teor.