A subida da percentagem de remuneração dos depósitos deveria ser simétrica e simultânea da subida das taxas de juro dos empréstimos, já que o dinheiro que os bancos emprestam para aquisição de habitação própria é o mesmo que neles é depositado pelos clientes aforradores.
Por Henrique Rodrigues *
1. Tem causado certa perplexidade o facto de os bancos terem vindo a aproveitar a subida das taxas de juro para agravar as condições dos empréstimos concedidos aos seus clientes, designadamente para aquisição de habitação própria; e não elevarem na mesma proporção a remuneração dos depósitos a prazo ou outras aplicações financeiras não especulativas.
A situação de agravamento das taxas de juro e das prestações dos empréstimos tem assumido particular gravidade no domínio do crédito à habitação.
Repetindo sem revisão nem emenda as práticas da anterior crise global do mercado imobiliário, os bancos aproveitaram a maré das taxas de juro nulas, ou mesmo negativas, para promover a compra pelas famílias de habitação própria por recurso ao crédito bancário.
Não era difícil o exercício da convicção: perante a inexistência de casas para arrendar a preços sensatos, e como sucedera há algumas décadas, os bancos insistiram na tecla de transformar cada família na proprietária do seu domicílio.
O preço da renda seria equivalente à prestação do empréstimo hipotecário – e, mal por mal, mais valia as poupanças serem destinadas à aquisição de casa própria do que ao enriquecimento do senhorio.
Só que, no último ano, tudo mudou!
(“O mundo mudou”, como diria José Sócrates, a outro propósito e noutro contexto.)
De súbito, as taxas de juro começaram a subir pelas paredes acima, fazendo crescer as prestações mensais e tornando incomportável para o rendimento das famílias médias o pagamento ao banco das mensalidades do empréstimo.
(Importa não esquecer que cerca de um milhão de trabalhadores recebe o salário mínimo e que metade dos trabalhadores portugueses recebe um salário inferior a mil euros.
Ora, com o actual nível das taxas de juro, mil euros é o valor da prestação por um empréstimo de 200.000,00 – abaixo do qual uma família não consegue comprar casa nas áreas mais densamente povoadas.)
2 – A perplexidade a que me refiro no início da crónica – se é que ainda há espaço para perplexidades no mundo da alta finança – resulta de os bancos andarem todos lampeiros na aplicação aos contratos de crédito existentes das taxas de juro crescentes – mas não terem a mesma pressa na subida da remuneração que lhes compete pagar relativamente aos depósitos dos seus clientes.
Ora, a subida da percentagem de remuneração dos depósitos deveria ser simétrica e simultânea da subida das taxas de juro dos empréstimos, já que o dinheiro que os bancos emprestam para aquisição de habitação própria é o mesmo que neles é depositado pelos clientes aforradores.
Acresce que a situação assume foros de escândalo, na medida em que, se os bancos nacionais seguem as ordens do Banco Central Europeu no que respeita à subida das taxas de juro nos empréstimos, não seguem, todavia, a lição da banca europeia na remuneração dos depósitos, em que figuramos, como é da praxe, no fim da tabela.
Tal idiossincrasia levou até já o Presidente da República a pedir aos bancos “um esforçozinho”, no que se refere à remuneração dos empréstimos a prazo – que actualmente é nula -, no que não é seguramente uma das intervenções mais felizes do Supremo Magistrado da Nação.
(O sufixo “inho” evoca sempre o retrato que Alexandre O’Neill fazia de um certo Portugal: “Neste país em diminutivo/respeitinho é que é preciso.”)
Mas, mesmo que sob a forma mitigada que não lhe é própria, o Presidente da República sempre deixa um apontamento de censura e condenação dessa prática clássica da banca, de pagar o mínimo e “sacar” o máximo.
Já o mesmo se não pode dizer do Governo, de quem se esperava mais a protecção dos cidadãos do que as cumplicidades electivas com os interesses especulativos dos bancos.
3 – Com efeito, tem sido muito debatido nos últimos dias o facto de o Ministério das Finanças, inopinadamente, ter determinado a suspensão da subscrição dos certificados de aforro da Série até agora em vigor, remunerados à taxa de 3,5% – para abrir a subscrição de uma nova Série, com mais baixa remuneração – de 2,5%.
Trata-se de título de dívida pública que constituem um refúgio natural das poupanças dos pequenos aforradores, da classe média, sem risco, porque garantidos pelo Estado.
Tem sido um sucesso a subscrição desses títulos: só de 2021 até hoje, o montante da dívida pública emitida por via dos Certificados de Aforro e Obrigações do Tesouro aumentou de 30 mil milhões de euros para 45 mil milhões.
(Trata-se de declarações do Secretário de Estado das Finanças, no “Público” de 4 de Junho.)
Mas o sucesso para os cofres do Estado, quanto à captação da poupança dos portugueses, constitui um insucesso para a banca – que vê fugir-lhe para a concorrência os depósitos dos particulares.
Pudera! Pois se o Tesouro paga a 3,5% e a banca paga a 0,9% ao ano, só quem tiver vocação para sofrer é que escolhe o que paga menos.
Para os bancos, punha-se um dilema: ou acompanhavam o movimento dos bancos da zona euro, que remuneram os depósitos à razão média de 2,1%; ou convenciam o Estado a degradar a sua oferta em Certificados de Aforro, eliminando a concorrência do Tesouro, para recuperarem, sem custos, os depósitos que lhes tinham fugido.
Para a primeira hipótese, os bancos não precisavam da cumplicidade das autoridades: bastava-lhes decidir, sozinhos, o aumento das taxas de juro dos depósitos.
Mas para a segunda, que era a que favorecia os bancos, era mister obter a concordância do Ministério da Finanças.
Foi naturalmente esta segunda hipótese a que prevaleceu; com sucesso: o Governo suspendeu a subscrição dos Certificados de Aforro da Série que estava em vigor, com remuneração à taxa de 3,5%, abrindo uma nova Série, agora à taxa de 2,5% e com piores condições do que a anterior, para além da taxa – nomeadamente baixando o limite máximo de subscrição, que passou de 250.000,00 euros para 50.000,00 euros.
Claro que o Ministério das Finanças veio desmentir a explicação que o senso comum fornecia para a mudança do regime dos Certificados de Aforro: não houvera qualquer pressão dos bancos para a mudança.
Mas não deixa de ser verdade que a mudança coincidiu com declarações públicas de responsáveis bancários, objectando à concorrência do Tesouro quanto à captação das poupanças.
E o próprio Ministro das Finanças, segundo o “Público” de 4 de Junho, apresentou como uma das motivações do Governo o facto de que “a corrida a este produto de poupança (os Certificados de Aforro) tem um impacto… nas contas dos bancos, que perdem liquidez com a fuga de depósitos.”
Para finalizar este excurso por narizes de cera, impõe-se desmentir outro dos fundamentos invocados pelo Ministério das Finanças: o de que, à taxa de 3,5%, ficaria mais barato ao Estado financiar-se com emissão de dívida externa, nos mercados internacionais.
Pena que o Expresso de 2 de Junho tenha dado nota de uma informação da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, de que “o custo médio do financiamento da nova dívida pública emitida por Portugal mais o que duplicou em quatro meses… e que o juro médio dessas operações subiu para… 3,5%.”
Mais depressa se apanha um mentiroso…
4 – Em vésperas das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, já era tempo de levar a sério a advertência de Mário Soares, quanto à submissão do poder económico ao poder político.
E de quem nos governa – ou governará – dar maior estatuto ao voto público dos portugueses nas urnas do que ao voto à puridade nos salões dos Conselhos de Administração.
Ou dos board – como agora se escreve em português.
* Presidente do Centro Social de Ermesinde. Artigo publicado originalmente no site Solidariedade.pt
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