“Aveiro ocupa uma posição relevante no património molinológico”

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Parque molinológico de Ul, Oliveira de Azeméis.

Aproxima-se o Dia Nacional dos Moinhos, com muitas atividades na região de Aveiro aproveitando alguns dos exemplares mais bem preservados do País.

Armando Jorge de Carvalho Ferreira é especialista no tema que inspirou a escrita do livro de ficção “O último moleiro do rio” baseado em memórias recolhidas nas suas pesquisas etnográficas.

O livro foi lançado há um ano. Como tem sido a receptividade?
O livro foi lançado no dia 8 de Abril de 2017, pelo que exactamente há um ano. A cerimónia de lançamento foi um grande sucesso, pois foi muito gratificante constatar que o salão nobre da Biblioteca Municipal de Albergaria-a-Velha foi demasiado pequeno para acolher todos aqueles que comigo quiseram partilhar esse momento especial.
Desde essa altura já tive a oportunidade de apresentar o meu livro em vários locais, alguns deles fora da região de Aveiro, sempre com uma excelente adesão em termos de participação do público.
Além disso, as reacções extremamente positivas que tenho tido de quem já leu o livro, deixam-me muito satisfeito e excedem bastante as minhas próprias expectativas mais optimistas.
Face a todo esse retorno que tenho tido, estou cada vez mais convencido que valeu a pena ter aceitado o desafio pessoal de editar esta minha primeira obra de ficção.

Pode recordar-nos como surgiu a ideia do livro?
Trata-se de uma obra de ficção, na forma de um único conto. Depois da publicação de diversas obras que tiveram como base a investigação e os trabalhos de campo efectuados na área da Molinologia, procurando assim a documentação e valorização do nosso património molinológico, senti a necessidade de escrever sobre todos aqueles que comigo têm partilhado as suas memórias nos últimos anos, há mais de uma década e meia, desde que me comecei a dedicar à temática dos moinhos tradicionais. Escrever algo mais sobre as suas vidas, sobre um modo de vida que foi passando de geração em geração ao longo dos últimos séculos, mas que se foi extinguindo completamente ao longo das últimas décadas.
Procurei assim “humanizar” um pouco mais todo este património, sendo que este foi construído e mantido activo por pessoas, sem as quais nada existiria ou faria sentido.

As histórias que procurou contar são de figuras e locais inspirados pela pesquisa molinológica? E quais (algumas) as histórias que podem ser lidas?
Neste livro procurei sintetizar e ao mesmo tempo abarcar um conjunto de pequenas «estórias», de que foi feita parte da história destes moleiros e moleiras, heróis anónimos de outras épocas. Todas as personagens deste conto têm por base homens e mulheres que terão vivido esses tempos, sendo que todo o enredo foi ficcionado e é da inteira responsabilidade do autor, embora tendo por base factos históricos do período onde este decorre, algures nos finais da década de sessenta do século XX, assim como factos da vida de alguns protagonistas reais, os quais me deram a honra de comigo partilharem as suas memórias.
Como personagem principal temos um casal de moleiros, um dos últimos que continua a deslocar-se de forma sazonal ao moinho do grande rio. Com o ansiado regresso da guerra em África do seu único filho, este traz consigo uma outra visão do mundo e dos ventos de mudança que aos poucos, mas de forma inexorável, começavam a pôr em causa mentalidades e modos de vida. Nesse confronto entre a tradição e a modernidade, entre o apego à memória e a busca por um futuro diferente, cultivam-se os sonhos e perdem-se as ilusões, com a certeza porém de que nada será como dantes.
Este não é um livro sobre moinhos. É um livro essencialmente sobre pessoas. Atrevo-me a dizer que podia ser um livro sobre a história de vida de muitos de nós, se porventura tivéssemos vivido naquela época e confrontados com aquelas circunstâncias, seja aqui na nossa região ou em muitos outros locais do nosso país.

Algumas destas pessoas / profissões antigas e também lugares estão em risco de sobreviverem apenas como memórias?
Compete um pouco a todos nós, assim como às entidades competentes que devem zelar pelo nosso património colectivo, contribuírem para que o valioso património molinológico da nossa região possa se manter vivo para as gerações futuras. Contudo, devemos ter a perfeita consciência que a função dos moinhos tradicionais e a sua importância na economia e no dia-a-dia das comunidades não é a mesma hoje da que era algumas décadas atrás.
Nesse sentido, teremos de apostar na sustentabilidade deste património, procurando parcerias e criando dinâmicas que o mantenham vivo, numa escala diferente e sempre numa perspectiva de futuro, pois só assim, valorizando o que de positivo o passado nos pode oferecer, do ponto de vista cultural, pedagógico, gastronómico e muitos outros, podemos perspectivá-lo como factor de desenvolvimento local em termos de presente e futuro.

Ainda se encontram moleiros em actividade à antiga ou apenas as recriações etnográficas de alguns grupos e colectividades?
Felizmente ainda subsistem alguns moleiros ou proprietários de moinhos que exercem a sua actividade, muitas vezes em paralelo com outra profissão, mantendo estes engenhos a laborar da forma tradicional como lhes foi transmitido pelas gerações anteriores de velhos mestres moleiros.
Será porventura a última geração a fazê-lo, pelo que penso ser essencial que se possa apostar mais na transmissão desses saberes às novas gerações, para que esta os possam recriar e manter assim vivo todo o património imaterial a eles associados. Sou de opinião que esse será o grande desafio deste património, muito maior do que a própria parte física e material dos moinhos.
As recriações etnográficas são importantes e de louvar, mas quando só elas subsistirem, teremos perdido definitivamente o desafio de mantermos este património vivo e parte da nossa identidade.

Perspectiva dar continuidade à obra, tem planos nesse sentido, continuar a escrever sobre o tema desta forma?
Pretendo continuar a actividade de investigação e divulgação na área do património, nomeadamente na área da Molinologia, onde a experiência adquirida e a rede de contactos são uma mais-valia que pretendo reforçar em termos de futuro. Esse facto poderá levar à publicação de mais alguns trabalhos de investigação e divulgação, como aliás tenho continuado a fazer nos últimos anos. A par da atenção que tenho dado e pretendo continuar a dar ao distrito de Aveiro, estarei disponível e procurarei cada vez mais alargar a minha área de intervenção para fora da nossa região, como aliás já tenho feito nos últimos tempos, pois acredito que existe muito trabalho ainda por fazer nessa área em outros pontos do nosso país e porque eu gosto sempre de contactar com outras realidades e aprender algo mais com outras gentes, ao mesmo tempo que estou sempre disponível para partilhar as minhas próprias experiências nesta área. Quanto à publicação de outras obras de fundo, de ficção ou não, o futuro e o impulso pessoal do momento é que ditarão o que poderá vir a acontecer.

O seu livro é também um contributo para a preservação deste património, muito dele imaterial?
Esse é um dos principais objectivos que tenho perseguido com a publicação de todas as minhas obras, sejam elas na área da monografia ou neste caso da ficção. Acredito que só conhecendo podemos valorizar algo, sendo que só valorizando algo podemos ter um papel activo na sua salvaguarda e preservação. A questão imaterial deve ter aqui um destaque especial, pois estou convencido que é a área do património onde o risco de perda é mais elevado, fruto das mudanças aceleradas que se vão verificando nos hábitos de vida e nas mentalidades.

Qual é o panorama actual na nossa região quanto ao património molinológico? Temos bons exemplos de recuperação / preservação e iniciativas que entenda destacar como positivas? As autarquias estão atentas?

Sou de opinião que o distrito de Aveiro ocupa uma posição relevante a nível nacional, no que concerne à importância do seu património molinológico. Tanto numa perspectiva de qualidade, de quantidade ou de diversidade, podemos dizer que este distrito é um excelente objecto de estudo e um exemplo a considerar quando abordamos a temática da Molinologia em Portugal.
Se em algumas regiões do nosso país, a tipologia dos sistemas de moagem se restringe quase na sua totalidade a um ou dois tipos de engenhos, normalmente aos comuns moinhos de rodízio ou moinhos de vento de alvenaria, relegando para números quase residuais as outras tipologias, já no distrito de Aveiro podemos encontrar registo e vestígios, tanto da sua utilização em tempos ainda relativamente recentes, como até do seu uso ainda nos nossos dias, de praticamente todos os principais sistemas de moagem tradicional.
Felizmente na última década e meia surgiram muitos bons exemplos de aposta na valorização dos nossos moinhos tradicionais. Os melhores exemplos vieram porventura dos privados, dos proprietários que resolveram preservar esses espaços de memória, quase sempre impulsionados por razões afectivas de cariz familiar. Ou então de algumas associações locais que viram na dinamização desse património local uma forma de agregar os seus associados em volta de um projecto comum. Também algumas autarquias começaram a ver com outros olhos este património, valorizando-o como produto turístico e marca territorial da identidade cultural das suas comunidades. Como exemplo poderia mencionar o Parque Molinológico de Ul, no concelho de Oliveira de Azeméis, a Rota dos Moinhos de Albergaria-a-Velha, ou a recuperação do Moinho de Meias associado à Casa-Museu Egas Moniz, em Avanca, concelho de Estarreja.  

Existe também património importante em risco de se perder na nossa região?
Não podemos ter a veleidade de pensar que ainda vamos a tempo, ou que iremos ter a possibilidade de recuperar todos os moinhos tradicionais da nossa região. Já muito se perdeu e essa foi a ordem natural das coisas face às mudanças que se foram operando na nossa sociedade. Contudo, existem exemplares que, pela sua importância do ponto de vista histórico, arquitectónico, tecnológico, ou até mesmo de enquadramento natural, mereceriam que se pudessem reunir vontades para que não se venham a perder para sempre. Como mero exemplo cito o caso de um moinho de vento com estrutura em adobe no lugar de Vergas do Sul, no concelho de Vagos, ou os últimos vestígios dos moinhos de vento de tipologia única que ainda se encontram no concelho da Murtosa.

Algumas sugestões / propostas que gostaria de ver tidas em conta na nossa região para manter os velhos moinhos como memórias vidas?
Sou de opinião que cabe às autarquias locais, nomeadamente às câmaras municipais, um papel muito importante na dinamização e agregação de vontades para a valorização e preservação deste património. Muitas vezes a boa vontade ou a paixão de alguns privados precisa de ser incentivada e valorizada. Não se trata de financiar a manutenção da propriedade privada, mas sim de enquadrar e apoiar de várias outras formas quem possui este património e por vezes se sente isolado e desapoiado quando pretende mantê-lo vivo. Em casos especiais, em que devido à sua importância não se deve correr o risco de perder para sempre esse mesmo património, também deveria caber às autarquias locais darem o exemplo na sua recuperação. Contudo, não devem fazê-lo sem que garantam também a sua sustentabilidade em termos futuros. Nesse aspecto as associações locais podem desempenhar um papel chave, como guardiões e dinamizadores desses espaços, através da elaboração de protocolos de parceria em que todos fiquem a ganhar.

Qual o património mais importante, que entenda destacar, da região de Aveiro? Moinhos de água, de vento?
O património molinológico na região de Aveiro destaca-se em termos de qualidade e principalmente quanto à diversidade do mesmo. Sem desprimor para outros exemplos, gostaria de destacar os seguintes casos, tendo em conta a importância e raridade dos exemplares envolvidos:
– Azenhas de roda vertical do concelho de Vagos (em Ouca e no Boco), que em termos nacionais deve ser o concelho onde ainda subsistem mais azenhas dessa tipologia ainda em funcionamento;
– Moinho de rodízio com mecanismo desmultiplicador em Ouca, concelho de Vagos, recentemente recuperado e que utiliza soluções tecnológicas únicas a nível nacional;
– Moinho de vento giratório de Santo António, em Vagos, que é actualmente o único moinho de vento com velas de pano ainda funcional em todo o distrito de Aveiro. Também no concelho de Vagos, neste momento encontra-se em processo de recuperação um outro moinho da mesma tipologia, na freguesia de Calvão;
– Moinho de vento de armação metálica, no lugar de Ervosas, no concelho de Ílhavo. Trata-se de um exemplar único a nível nacional e um extraordinário engenho que se mantém preservado de forma primorosa pelos seus proprietários;
– Moinhola em Macieira de Alcôba (moagem manual), concelho de Águeda, que é um engenho único a nível nacional e porventura internacional;
– Atafona em Pedralva (moagem com animais), concelho de Anadia, que é também um exemplar único a nível nacional e um extraordinário engenho que se mantém preservado de forma primorosa por uma associação local inserido num museu etnográfico;
– Atafona de moer linho (moagem com animais), no concelho de Castelo de Paiva, que devido à sua raridade também é digna de destaque.

O turismo está a ser aproveitado para ajudar a preservar os moinhos?
Existem alguns bons exemplos no distrito de Aveiro em que as autarquias locais apostaram na recuperação e valorização dos moinhos tradicionais como produto turístico. Mas não basta recuperar um moinho e colocá-lo no roteiro turístico de uma freguesia ou de um concelho. Também aqui temos de pensar na sustentabilidade deste património, de forma a mantê-lo vivo e atractivo. Um moinho recuperado mas que não seja mantido vivo e pensado em termos de sustentabilidade futura, acaba por entrar em degradação em pouco tempo, gorando expectativas e desperdiçando investimentos. O turista do nosso tempo valorizará mais a novidade e as experiências únicas que pode ter ao visitar um moinho activo, do que somente ter a oportunidade de tirar uma fotografia em frente a um moinho fechado, já a denotar alguma degradação por falta de uso, remetido ao estatuto de postal ilustrado. As experiências únicas ficarão na memória e serão contadas e recomendadas aos amigos, a fotografia será mais uma no meio de dezenas de outras…

Dados biográficos

Armando Jorge de Carvalho Ferreira é natural de Albergaria-a-Velha onde nasceu em 1965, tendo-se dedicado nas últimas duas décadas à investigação e divulgação na área da Molinologia, sendo autor de diversas obras e estudos no âmbito dessa temática.

Autor em co-autoria com Delfim Bismarck Ferreira do estudo “Moinhos da Freirôa – Uns dos seculares moinhos do Rio Caima no concelho de Albergaria-a-Velha” (separata) e da obra “Moinhos do Concelho de Albergaria-a-Velha” (2003). Autor do estudo “Moinho de armação de Ervosas. Os moinhos de armação na região de Aveiro”, publicado no nº 1 da colecção Molinologia Portuguesa e do estudo “Moinhos e Moleiros do concelho de Estarreja”, publicado em separata (2007). Autor da obra “Moinhos do Distrito de Aveiro” (2008).

Autor em co-autoria com o jornalista Carlos Esteves da infografia “Moinhos de Portugal”, publicada on-line pelo jornal Expresso (2012). Autor do estudo “As atafonas no concelho de Albergaria-a-Velha e na região de Aveiro – A atafona do Sobreiro”, publicado em separata (2015).

Autor da comunicação “Os moinhos de vento no distrito de Aveiro”, publicado nas actas do Colóquio Sobre a Realidade dos Moinhos de Vento Portugueses (2016). Autor do artigo “The Portuguese tower windmills for grinding and their millwrights” publicado na revista norte-americana Windmillers’ Gazette (2016). Autor do conto “O último moleiro do rio” (2017).

Membro da TIMS – Sociedade Internacional de Molinologia e membro e colaborador da Rede Portuguesa de Moinhos, assume a coordenação geral da organização ao nível do distrito de Aveiro do evento “Moinhos Abertos de Portugal”, uma iniciativa da Rede Portuguesa de Moinhos no âmbito do Dia Nacional dos Moinhos (de 2007 a 2018).

Mentor do projecto “Rota dos Moinhos de Albergaria-a-Velha”, colaborador na sua implementação no terreno e consultor para o acompanhamento e desenvolvimento da mesma (de 2012 a 2014).

Paralelamente à investigação e consultoria levada a cabo na área da Molinologia, é responsável por uma das únicas páginas de Internet que a nível nacional aborda em exclusivo esta temática, colabora com alguns artigos temáticos na imprensa regional e participa em palestras ou conferências dedicadas ao tema.