Nos meus dois últimos artigos, escrevi sobre duas Geminações de Aveiro com cidades francesas, Bourges e Arcachon. Hoje, abordarei duas Irmanações africanas.
Por Diamantino Dias *
Nesta área, a primeira tarefa de que fui incumbido, na década de oitenta, foi a do fornecimento de material escolar para os alunos da Ilha do Príncipe. Depois de ter sabido, através da Embaixada Santomense, qual era a população escolar e a sua distribuição etária, adquiri, a peso, nas livrarias da cidade, não só antigas edições de livros para as disciplinas de Português (leitura e gramática), Matemática e Ciências Naturais, para os seis primeiros anos, mas também cadernos lisos, pautados e quadriculados – a muitíssimo bom preço, porquanto, pasme-se, as capas estavam desactualizadas e os meninos portugueses já não os queriam – e, ainda, lápis, lápis de cores e borrachas, que me dei ao trabalho de cortar ao meio, para serem mais.
Este trabalho chegou ao conhecimento da “Associação Sul”, constituída por africanos que se dedicavam à cooperação com os seus países, e, um dia, fui procurado por alguns deles que me alertaram para a possibilidade de, caso não fossem tomadas previdências, todo aquele material poderia ir parar à mão de alguém sem escrúpulos, que o viria a vender, embolsando o respectivo lucro.
Falei com o Presidente da Câmara, Girão Pereira, e sugeri-lhe que se mandassem-se fazer autocolantes com um barco moliceiro, onde se diria que aquele livro ou caderno era uma oferta da Câmara Municipal de Aveiro. Contudo, mais tarde, e considerando, por um lado, que esses autocolantes, ou mesmo folhas, poderiam vir a ser arrancados e, por outro lado, que esse processo não poderia ser aplicado ao restante material, foi contactado o embaixador português em São Tomé, que, se não me engano, era o doutor Anacoreta Correia, que assistiu à abertura do contentor e à entrega do material ao Ministro da Ilha do Príncipe, Eng.º Umbelina.
Curiosamente, esta recepção veio-me a ser confirmada pelo predito Ministro, quando, durante uma estadia, em Aveiro, me acompanhou numa deslocação a Salamanca, onde, para meu embaraço, foi motivo de curiosidade pública, porquanto, por estranho que pareça, apesar das inúmeras visitas que fiz a essa cidade, para reuniões da “Mesa Permanente Uma Rota para a Europa”, não tenho ideia de nunca lá ter visto nenhum negro.
Mais tarde, fui encarregado de comprar tubagem, galvanizada e plástica, para abastecimento de água da padaria de uma Missão Católica, situada em São Lourenço dos Órgãos, no concelho cabo verdeano de Santa Cruz, na ilha de Santiago, e de arranjar roupa para os habitantes necessitados desse Concelho irmanado com Aveiro . No que se refere ao vestuário, organizei um peditório nos estabelecimentos escolares concelhios e a resposta, se bem que abundante, por vezes, não foi a mais apropriada, pois recebemos muitas roupas de lã e guarda-chuvas que foram enviados para uma comissão que apoiava moradores do bairro aveirense de Santiago.
Para acondicionar esse material, pedi, à Feira Nova, única grande superfície existente, à época, que oferecesse embalagens utilizadas para transportar bananas, que uma camioneta da Câmara foi buscar, durante alguns dias. Escolhido o vestuário, foi acondicionado, por espécies, dentro das caixas que, após etiquetadas, por mim, a marcador, foram enviadas, com os preditos tubos, para a agência transportadora, para se juntarem a uma ambulância e a um pequeno carro cisterna, oferecidos pelos Bombeiros Velhos que, por sua vez, receberam contrapartidas da Câmara Municipal.
Passados uns tempos, desloquei-me a Cabo Verde, integrando uma Delegação de Aveiro, chefiada pelo Presidente Girão Pereira e incluindo o 1º Comandante e o Presidente da Direcção dos Bombeiros Velhos, respectivamente, António Manuel Machado e Ulisses Rodrigues Pereira e, ainda, o proprietário de uma empresa que se dedicava à adaptação de viaturas para uso das Corporações de Bombeiros, pelo que tive a oportunidade não só de assistir à inauguração-exibição da ambulância que percorreu, com a sirene a tocar e integrada num cortejo automóvel, toda a povoação de Pedra Badejo, nome da sede concelhia do município de Santa Cruz, mas também de participar na primeira viagem do carro cisterna que foi abastecer um novo depósito de uma pequeníssima aldeia, chamada Rebelo, perdida no interior montanhoso da ilha de Santiago.
Curiosamente, passados muitos anos, em Aveiro, um cabo verdeano perguntou-me, para meu espanto, se eu não tinha estado presente naquele acontecimento, para ele importantíssimo.
Visitei, também, entre outros locais, por exemplo, o antigo campo de concentração do Tarrafal – por ironia, perto, há uma bonita praia de areia branca, com o mesmo nome – e a Missão de São Lourenço dos Órgãos, onde tive a oportunidade de beber, pela única vez e sem receio, água não engarrafada e comer biscoitos provenientes da padaria, para onde tinham sido enviados os supracitados tubos.
Perguntei ao Padre pela roupa. Respondeu-me que esse assunto era da responsabilidade da Câmara. Uns dias depois, quando dava uma volta pela povoação, vi uma garagem aberta. Lá dentro, encontrava-se um Volvo que, soube mais tarde, tinha sido oferecido por uma ONG sueca, mas, tendo avariado e não havendo peças de substituição, estava encostado, tal como acontecia a todas as outras viaturas com problemas semelhantes.
Mas o que me leva a falar desta garagem é que algo, no seu interior, me pareceu familiar: entrei e vi, ocupando toda a parede do fundo e empilhadas até ao tecto, as “minhas” muitas dezenas de caixas de roupa, por culpa do carregamento e acondicionamento das quais tive uma hérnia inguinal, já operada. Enquanto estive na ilha, nunca ouvi ninguém falar das vestimentas. Assim, se já não era um grande crente em alguns tipos de caridadezinha para com os coitadinhos, a partir daí fiquei a ser total e irreversivelmente incréu, nesta matéria.
Na véspera da nossa partida, fui encarregado, pelo Presidente Girão Pereira, de participar numa reunião com representantes de associações locais que queriam apresentar petições. Percebi que, se fosse para satisfazer os pedidos, seria o Presidente quem estaria presente, pelo que tomei escrupulosamente nota de tudo – instrumentos musicais e respectivo material para sonoplastia, bolas, chuteiras e equipamentos de futebol –, dizendo, no final, que, chegado a Aveiro, iria apresentar a lista a quem tinha poder de decisão sobre o assunto.
Gostei muito de ter efectuado esta visita não só por ter sido o meu único contacto com África — conheci duas ilhas, Santiago e Sal –, mas por ter tido oportunidade de contactar com a população. Pessoas afáveis, asseadas, com quem só tive um problema no que respeita à comunicação: a maioria dos da minha idade só falava creolo. Já os mais novos possuíam níveis escolares elevados, pelo que falavam um português fluente e correcto.
Para acabar este capítulo sobre Geminações, direi que desta visita resultou a vinda a Aveiro, a expensas da Câmara, de uma menina de uma dezena de anos que tinha um grave problema cardíaco. Fui buscá-la a Lisboa, com a minha mulher, proporcionei-lhe um passeio nocturno na Baixa, durante o qual, a criança, de olhos esbugalhados, não despegou o nariz do vidro da janela e, no fim, quando lhe perguntei do que é que tinha gostado mais, respondeu-me: “DA LUZ!!!”. Esteve, uns tempos, em casa de um conhecido médico, o doutor Rui de Brito, foi examinada por especialistas, mas acabou por voltar para a sua terra, sem ser operada, já não sei por que motivo.
Se bem que tenha exercido actividades no que respeita a outras geminações, muito especialmente com Ciudad Rodrigo, onde me desloquei dezenas de vezes, no âmbito da “Mesa Permanente Uma Rota Para a Europa”, dou por encerrado este capítulo das minhas memórias.
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).
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