No que às Instituições Particulares de Solidariedade Social respeita, as revisões constitucionais passadas têm trazido mais vantagens do que prejuízo, na medida em que reforçaram a sua identidade e realçaram a sua missão.
1. Foi constituída na Assembleia da República a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, onde se vão debater os projetos de revisão da Lei Fundamental apresentados pelos vários partidos com assento parlamentar.
Nos termos do artº 286º, 1 da Constituição, as alterações ao diploma terão de ser aprovadas por uma maioria qualificada de dois terços dos votos dos deputados em efetividade de funções – o que significa que, dada a atual composição do Parlamento, nenhuma proposta passará sem o apoio do PS e do PSD.
Estes dois partidos já se encontravam, desde a liderança de Rui Rio, mais ou menos de acordo quanto à oportunidade de uma dita “revisão cirúrgica”, limitada à conservação dos metadados e à cobertura constitucional para a tomada de decisões limitadoras dos direitos, liberdades e garantias, em caso de pandemia.
Mas, entretanto, vários outros partidos entregaram propostas de revisão mais alargada e o processo de revisão constitucional assumiu uma dimensão que não fora a inicialmente prevista, vindo o PS e o PSD a afastar-se do figurino minimalista inicial e a apresentar, também eles, projetos que vão para além dos dois domínios referidos.
Uma revisão constitucional é sempre um processo onde confluem oportunidades e ameaças.
No que às Instituições Particulares de Solidariedade Social respeita, as revisões constitucionais passadas têm trazido mais vantagens do que prejuízo, na medida em que reforçaram a sua identidade e realçaram a sua missão.
A norma fundamental relativa ao enquadramento das IPSS no texto da Constituição era, na versão inicial, de 1976, o artº 63º, nº 3, e estipulava o seguinte: “3. A organização do sistema de segurança social não prejudicará a existência de instituições privadas de solidariedade social não lucrativas, que serão permitidas, regulamentadas por lei e sujeitas à fiscalização do Estado.”
Era uma definição do seu papel pela negativa: “não prejudicará”; eram toleradas, regulamentadas e fiscalizadas.
As sucessivas revisões constitucionais afeiçoaram essa definição primitiva, salientando-se a revisão de 1989, que passou a reconhecer a constituição de IPSS como um direito, embora mantendo a tónica na regulamentação e fiscalização pelo Estado; e a revisão de 1997, que aprovou a atual formulação, agora com o nº 5 do citado artº 63º: «5. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a atividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72º».
Esta revisão de 1997 retira o dever da regulamentação pelo Estado como obrigação constitucional e faz acrescer ao núcleo do artigo uma nova vertente, consagrando o dever de apoio do Estado no que respeita à prossecução, pelas Instituições, dos objetivos de solidariedade social identificados no mesmo preceito.
Este dever de apoio para a prossecução dos seus objetivos constitui a garantia constitucional do modelo português de proteção social, designadamente no que toca à prestação de cuidados através de uma rede nacional de serviços e respostas sociais, desenvolvidas e administradas pelas Instituições Particulares de Solidariedade Social.
Não obstante esta norma constitucional constar do artº 63º, que tem como epígrafe “Segurança Social e Solidariedade”, o certo é que a parte final do mesmo preceito alarga o âmbito das atividades credoras de apoio às que as Instituições desenvolverem no que respeita ao apoio à família, designadamente ao “Promover a criação e garantir o acesso a uma rede nacional de creches e de outros equipamentos sociais de apoio à família, bem como uma política de terceira idade” (artº 67º, 2.; b), e também no apoio à infância, com particular ênfase na proteção de menores em risco (artº 69º), o mesmo se dizendo relativamente às atividades de tempos livres para os jovens (artº 70º, 1., e), bem como no apoio e integração das pessoas com deficiência (artº 71º) e à população idosa (artº 72º).
2. O artº 63º da Constituição, e mais especificamente o seu nº 5, vai a debate na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Pelo menos o Bloco de Esquerda integra esta disposição na proposta de revisão, pelo que poderemos conhecer melhor as posições dos vários partidos quanto ao papel das IPSS na prestação de cuidados e na rede de proteção social.
A alteração proposta pelo BE, embora mantendo o apoio e fiscalização do Estado à atividade das IPSS, restringe-o ao âmbito da segurança social e da solidariedade, em sentido estrito, retirando-lhes as competências conferidas por algumas das disposições acima referidas – artº 67º, 2., b), artº 70º e artº 71º.
Essas competências passariam para “um Serviço Nacional de Cuidados”, desenvolvido “pelo Estado, universal e geral, com gestão descentralizada e participada, com vista a garantir o acesso de todos os cidadãos … aos cuidados em situação de dependência com vista à prossecução dos objetivos consignados, nomeadamente, na alínea b) do nº 2 o artº 67º e nos artigos 70º e 71º.”
Reforçando esse pendor, o mesmo projeto de revisão constitucional prevê como incumbência do Estado “Criar uma rede pública de educação para a infância e assegurar o direito universal à creche e à educação pré-escolar (artº 74º, d).
Não é esse, no entanto, o ar do tempo.
Pelo contrário, a solidariedade vem escapando do espartilho que a acomodava como uma dimensão estrita da Segurança Social, constituído cada vez mais um eixo transversal das políticas públicas que, nas sociedades modernas, devem discriminar positivamente os mais desprotegidos.
Ente nós, e mais recentemente, a tradução dessa transversalidade encontra-se no Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social- instrumento multilateral que estendeu a campos e domínios novos das políticas públicas o papel que as IPSS devem desenvolver para diminuir as desigualdades entre os cidadãos.
O Pacto define que a cooperação do Estado e dos Municípios com as Instituições deve alargar-se à intervenção social no âmbito das atribuições da Presidência do Conselho de Ministros, da Economia e Transição Digital, das Finanças, da Administração Interna, da Justiça, da Modernização do Estado e da Administração Pública, do Planeamento, da Cultura, da Educação, da Saúde, do Ambiente e Ação Climática, das Infraestruturas e da Habitação e da Coesão Territorial.
Para além do Trabalho, do Emprego e da Segurança Social, naturalmente.
3. De modo que a questão a pôr no seio da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional não será tanto, como querem alguns, esvaziar as atribuições das Instituições de Solidariedade no esforço coletivo para o desenvolvimento mais justo e harmonioso do nosso País e para a correção das desigualdades, mas a de potenciar as imensas virtualidades desta rede capilar de proximidade a que pertencemos, conferindo uma dimensão de solidariedade às diversas dimensões da generalidade das políticas públicas.
E pergunto-me se, em vez de reduzir ou enfraquecer a expressão das IPSS no texto constitucional, não seria de os agora constituintes organizarem com outra autonomia e especificidade, na estrutura desse texto, o papel destas Instituições, como instrumento de Estado no desenvolvimento das políticas públicas e na impregnação delas pelos valores da solidariedade.
* Presidente da CNIS – Conferedação Nacional das Instituições de Solidariedade. Editorial de dezembro do jornal Solidariedade.pt.
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