Na minha Faculdade, era comum os docentes ficarem até ao limite de idade, os 70 anos. Decerto os motivos variavam, entre a paixão pelo que faziam, a falta de hobbies — que a vida universitária, de tão absorvente, sempre deixou pouco espaço para cultivar outros interesses —, e, por que não, o orgulho de ostentar o título mais honorífico de “professor jubilado”. Mais recentemente, no entanto, fui percebendo que mais e mais pessoas optavam pela aposentação, algumas até pela reforma antecipada.
Por Isabel Caldeira *
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Não haverá, quanto a esta situação, nada de propriamente singular em relação a outras profissões, mas não é de somenos importância o facto de se tratar da Universidade de Coimbra, que gosta de conservar uma certa aura de instituição de tradição e excelência, tanto como imagem que alimenta para si própria, como também para o exterior. Eu, que lá passei 46 anos como docente mais cinco como aluna, fui cultivando ao longo do tempo uma certa resistência a essa aura, para mim embebida de muito conservadorismo e crescente dose de marketing. Por isso, o último dos motivos atrás aventados para a decisão pela jubilação nunca fez sentido para mim. Mas talvez tivesse ficado até ao fim — afinal, nem faltava muito — não fora o mal-estar que se foi instalando nos últimos anos. E é esse mal-estar que pressinto refletido em muitas colegas, mesmo bastante mais novas, que antes falavam em ficar até aos 70 e agora aguardam ansiosamente pela contagem do tempo regulamentar para a aposentação. Usei aqui deliberadamente o género feminino, já que, numa observação empírica, me apercebi de que essa tendência é mais observável nas mulheres. Independentemente da classe social, é ainda comum a “dupla jornada” e não é de estranhar que sejam as mulheres a sentir mais cedo o cansaço acumulado.
Quanto ao mal-estar que mencionei atrás, cada um/uma o viverá a seu modo, mas, para mim, centrava-se em dois aspetos fundamentais: a crescente desumanização das relações, no plano institucional e também interpessoal, e a progressiva diminuição da exigência no plano pedagógico, enquanto se avolumava a quantificação na avaliação da nossa produção científica, com a soberania dos indicadores bibliométricos. Quando começamos a sentir que já não nos revemos na Escola que funcionou durante tanto tempo como a nossa segunda casa e à qual dedicámos tanto, muitas vezes à custa de sacrifícios pessoais e familiares, chegou o momento de sair. Foi o que aconteceu comigo, mas sou uma privilegiada, pois tive opção e, à minha espera, uma reforma confortável.
Mas o mais importante, como sabemos, é o que se vive nos dias, meses e anos a seguir à reforma. Também nesse aspeto sinto-me uma privilegiada. Na minha carreira, não há propriamente uma cessação abrupta de atividade.
Podemos continuar o percurso de investigação e restam sempre as orientações de doutoramento, o que nos pode ocupar ainda alguns anos. Esta transição mais suave que noutras carreiras é bastante propícia a uma adaptação gradual à nova fase de vida. No meu caso, juntou-se a vontade de cultivar outros interesses, interrompidos pela complicada gestão da vida profissional e familiar, ambas intensas e exigentes. E fazê-lo agora num dia a dia aliviado do stress e da ansiedade duplica o prazer e a fruição.
* Artigo publicado originalmente no boletim informativo da APRe Associação Cívica.
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