Numa recente publicação sobre o percurso do leite desde a vaca até à fábrica, perante o relato de como decorria o processo de recolha do leite há 60 anos, sem refrigeração e pasteurização, alguém comentou: “Bons tempos. Agora já nem sei se é leite que bebo”. Não respondi na altura, porque este pensamento, muito comum, precisa de uma resposta mais longa e fundamentada. O valor de uma coisa depende da quantidade em que existe no mundo, da quantidade que temos e da falta que nos faz (no fundo, da oferta e da procura). Ouro e diamantes valem muito porque são raros, mas se estivermos numa estrada do deserto e longe de tudo, uma garrafa de água vale mais do que ouro nesse momento.
Por Carlos Neves *
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Quando temos fome, damos valor aos alimentos. Quando sentimos que existe risco para a saúde, damos valor à segurança dos alimentos. Na nossa sociedade, no “mundo ocidental”, temos fartura. A maioria das pessoas tem dinheiro suficiente para comprar comida e tem a poucos metros de casa ou à distância de um clique uma enorme variedade de alimentos seguros e controlados, mas também tem saudades da sua infância passada no campo onde viveram os seus avós e tem saudades porque era mais jovem, tinha mais saúde, mais sonhos e mais anos de vida pela frente, mas a vida não era mais fácil e o leite não era melhor.
Antes de haver máquinas de ordenha, tanques frigoríficos para guardar o leite e fábricas para pasteurizar e tirar gordura do leite, as vacas eram ordenhadas à mão, em cima do estrume, debaixo de pó e o leite era transportado em bilhas de metal levadas por carroças, sem arrefecer, até à fábrica ou ao consumidor da cidade.
Na primeira metade do século XX, a qualidade da leite era tão baixa que surgiram em Portugal modernas vacarias ou “lactários” dentro das cidades, promovidas por benfeitores ou pelas autoridades, para alimentar as crianças mais pobres com leite melhor do que era levado do campo pelas leiteiras, as senhoras que transportavam e vendiam leite. Não havendo cadeia de frio, era preciso adicionar algum conservante ao leite. Não havia análises. Muitas crianças nasciam mas não sobreviviam até à idade adulta por causa da fome e de doenças de origem desconhecida, muitas vezes devido à falta de higiene.
Hoje as vacas são criadas em modernos estábulos muito melhores do que os velhos “aidos”. Têm acompanhamento veterinário. São obrigatoriamente controladas para as doenças que se podem transmitir aos humanos . São ordenhadas com máquinas de ordenha que se lavam automaticamente com água quente e detergente. O leite é imediatamente arrefecido, armazenado no tanque frigorífico e transportado em camiões isotérmicos até à fábrica onde não pode entrar sem ser analisado para garantir que não tem resíduos de antibiótico. É filtrado, homogeneizado, pasteurizado ou ultrapasteurizado para eliminar as bactérias patogénicas e podem tirar-lhe uma parte da gordura. É colocado em embalagens esterilizadas e não leva conservantes, podendo dispensar a conservação em frio no caso do leite UHT. É certo que nesse processo perde algum sabor, mas é mais fácil, mais barato e mais cómodo de transportar, conservar e consumir. É a forma mais razoável de oferecer o leite ao consumidor de forma segura e económica.
Houve uma evolução equivalente na produção da manteiga, do queijo e dos iogurtes. Mantém-se e recuperam-se produtos artesanais e todos os dias surgem novidades no mercado. Apesar de todos os ataques ao “leite” por parte de quem pretende ocupar o “espaço no estômago” com outros produtos mais caros e menos nutritivos, os corredores de supermercados têm uma variedade enorme de leite para beber, de queijos, de iogurtes e agora recentemente muitos produtos à base da proteína do leite.
Produzimos um alimento com 10.000 anos de história e temos motivos para dar valor a toda a evolução, toda a tecnologia e toda a gente que trabalha na cadeia do leite para oferecer ao consumidor toda esta variedade de alimentos com mais controlo e segurança alimentar do que existia “antigamente”.
* Agricultor. Secretário-Geral da Associação dos Produtores de Leite de Portugal. Escrito para a Revista Vaca Pinta 42 — Dezembro de 2023.
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