O Prémio Nobel da literatura 2022 foi atribuído, no dia 6 de outubro, à escritora francesa Annie Ernaux, pela “coragem e acuidade clínica com que descobre as raízes, as distâncias e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”, e porque “na sua escrita, de forma consistente e a partir de diferentes perspetivas, Ernaux examina a vida, marcada por fortes disparidades sobre género, linguagem e classe”, justificou o júri.
Por Otília Pires Martins *
O anúncio do Júri de Estocolmo não foi propriamente uma surpresa – nem um escândalo – como já aconteceu em anos idos, com um Prémio cada vez mais passível de críticas, que não raras vezes já deixou o mundo perplexo, tão inesperadas e inexplicáveis pareceram as suas escolhas. Não foi, seguramente, o caso este ano. Annie Ernaux encontrava-se entre os nomes mais citados, ao lado de “pesos pesados” como Michel Houellebecq, Anne Carson e, claro, Salman Rushdie.
A França é, até ao momento, o país com maior número de contemplados com tão elevado galardão: eram já 15 os escritores franceses distinguidos (Bergson, Gide, Mauriac, Camus, Sartre, Le Clézio, Modiano e outros tantos), todos homens! Annie Ernaux torna-se, assim, a 1.ª mulher da lista e a 17ª dos 119 já atribuídos.
Para a autora, de 82 anos, o Nobel surge como o culminar de um impressionante percurso recheado de prémios e outras distinções, onde não falta já o prestigiado Renaudot nem o privilégio de ter integrado, em 2019, a short-list para o Man-Booker Prize, nomeação que, só por si, lhe trouxe a quase consagração e o tão merecido reconhecimento internacional.
Annie Ernaux é uma das figuras de maior relevo na cena literária contemporânea francesa, reconhecida por uma obra (com chancela das prestigiadas Edições Gallimard) de dimensão marcadamente “autobiográfica, universal e política”. Inicialmente incompreendida e até rejeitada pela academia (leia-se: “os universitários”), a sua obra intimista e pluridimensional (romances autobiográficos, auto-socio-biografias, diários íntimos e diários extímos – por oposição a íntimos) foi-se tornando, ao longo do tempo, lugar apetecível para leitores, mas também para críticos e estudiosos que se pelam por indagar os mais diversos aspetos do “entre-lugar” sociológico, psicológico ou psicanalítico, temático e intertextual que resulta da “vivência dos limites” na sua condição de mulher.
A escritora enfrenta a realidade para “escrever a vida”. Contou a sua infância, adolescência e juventude em Les Armoires vides (1974) e em Ce qu’ils disent ou rien (1977); a família, os pais e a sua emancipação social em La Place (1983) e La Honte (1997); o seu casamento, os filhos, o seu trabalho de professora em La Femme gelée (1981); a morte da mãe em Une femme (1987), a paixão por um diplomata estrangeiro, casado e muito mais novo, em Passion simple (1992). E contou, de modo cru, em L’Evènement (2000), a experiência traumática do seu aborto clandestino, em 1963, 12 anos antes da “lei Simone Veil”. De tudo isto a autora fará uma síntese magistral em Les Années (2008). Contará ainda o “segredo de família”, a morte da irmã antes do seu nascimento, em L’Autre Fille (2011), a sua cidade em Regarde les lumières mon amour (2014) e a sua iniciação sexual falhada em Mémoire de fille (2016).
Através da autoficção e de uma literatura do real, a autora desenha a cartografia interior de uma mulher que nasceu e cresceu durante a IIª guerra mundial e se tornou adulta nos anos 60, na França do pós-guerra, consciente da vergonha da sua origem modesta, mas sobretudo do estranhamento causado por uma quase inevitável ascensão social (acesso ao ensino superior, casamento burguês) na sociedade francesa, conservadora e fechada, do pós-guerra: “É a história da minha vida, mas também a de milhares de mulheres que procuraram desesperadamente a liberdade e a emancipação”. E será inevitável que, com uma obra que se alimenta da história da sua própria vida, de uma emancipação simultaneamente íntima e social, a autora se torne numa “referência intelectual” para toda uma geração que chegou ao feminismo na esteira do movimento #MeToo. Sendo que a sua escrita engagée se destaca por uma convicta tomada de posição em favor de um “feminismo” inteligente e inclusivo, o Nobel de Annie Ernaux não recai apenas sobre “uma” mulher, mas sobre as mulheres do mundo inteiro. Que bela vitória, que reconfortante “revanche” para a autora de Os anos, O Acontecimento e outros tantos títulos onde o sofrimento causado pela opressão, pela desigualdade, se tornou a “matéria intensa” de uma escrita sem artifícios, nua e depurada.
Os leitores portugueses podem facilmente sucumbir ao prazer da leitura de alguns dos livros mais marcantes da autora que se encontram traduzidos e editados em Portugal, pela Porto Editora/Livros do Brasil: Um lugar ao sol, Uma Mulher, Uma paixão simples, Os anos, O Acontecimento (Annie Ernaux vence Prémio Nobel – Livros do Brasil).
* Professora da Universidade de Aveiro. Artigo originalmente publicado no site UA.pt (ler versão completa).
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