Bruto da Costa era sóbrio, mas apaixonado e incisivo. A conversa avançou com esse brilho pela noite fora e ele rematou-a com a leitura de um poema que não voltei a encontrar, mas cuja imagem central não me saiu da cabeça.
Por José Tolentino de Mendonça *
Quem vive nas mansardas
tem:
a) o orvalho mais cedo…
Carlos de Oliveira
Por vezes penso na felicidade que um cristão como Alfredo Bruto da Costa deve ter sentido a escutar o programa do Papa Francisco. Um Papa que escolheu o seu nome a pensar nos pobres, como o próprio conta: “O Cardeal Cláudio Hummes confortava-me durante o Conclave. Quando se alcançaram os dois terços dos votos, depois do aplauso de tradição, ele abraçou-me e disse-me para não me esquecer dos pobres. Aquela palavra entrou-me no pensamento. E exatamente em relação aos pobres comecei a pensar em Francisco de Assis”.
Um Papa que na sua primeira e simbólica visita apostólica se desloca à ilha de Lampedusa para atualizar aquela pergunta do Livro do Génesis que também para Bruto da Costa será a bússola espiritual: “Onde está o teu irmão?” (Gen 4:9). Um Papa que ainda agora na sua mais recente encíclica, “Todos Irmãos”, volta a esse motivo escrevendo: com esta pergunta, Deus “habilita-nos a criar uma cultura diversa, que nos oriente (…) a tomarmos a responsabilidade uns pelos outros” (FT, 57).
É verdade que Alfredo Bruto da Costa sabia bem que quando escolheu o combate à pobreza como a causa da sua vida tinha do seu lado a grande tradição da Igreja, a começar pelos Evangelhos, os Padres da Igreja, os Concílios e o magistério dos Papas. E um testemunho que deixa é precisamente o de que os leigos devem conhecer a fundo, como ele conhecia, as páginas vivas do cristianismo, aquelas que mais nos desinstalam e desassossegam, aquelas que mais intensamente comprometem na construção do Reino de Deus. O problema, diz ele, é depois “o desfasamento entre o que me parece ser, por um lado, o lugar da pobreza (nos seus diversos significados) na mensagem evangélica e, por outro, o entendimento que a esse respeito parece ter a maior parte dos cristãos e até a pregação corrente nas comunidades cristãs”.
Como os profetas, a voz de Alfredo Bruto da Costa foi também uma voz solitária, contracorrente, carregada de urgência e de futuro. Ele não foi apenas mais um católico no espaço político, universitário ou social: com esse elã profético era um símbolo de um catolicismo público que sempre se apresentou como um serviço aos últimos, reparando e reforçando, dessa maneira, a frágil coesão da nossa sociedade; era um símbolo de um cristianismo enraizado na mística nua do evangelho e na doutrina social da Igreja, cultivando
uma liberdade profética de pensamento e de palavra. Dentro do espaço eclesial, Bruto da Costa tinha também a dimensão de um moderno apóstolo social, lutando por afirmar a centralidade de tópicos como a pobreza, a desigualdade ou as dinâmicas de solidariedade, mas assentes num conhecimento científico da realidade, operando com método, planos, organização, e não confiando apenas na espontaneidade militante.
Recordo-me perfeitamente da primeira vez que o ouvi. Foi há uns trinta anos, estava eu em formação no Seminário dos Olivais. Às quartas-feiras à noite, como ainda hoje acontece, o Seminário abre-se a convidados que passam por lá num serão de conversa descontraída, mas com as ressonâncias imprevisíveis que certas palavras acordam nos verdes anos.
Lembro-me que um dos eixos da conversa que Alfredo Bruto da Costa propôs foi o seguinte: os direitos humanos fundamentais são universais; todos partilham e são protegidos pelo mesmo quadro normativo. O artigo 3º fala, por exemplo, do direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. O artigo 17º afirma que toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade, e ninguém pode ser arbitrariamente privado do que lhe pertence. Os estados protegem aqueles que são já detentores objetivos desses direitos. Mas quem protege os direitos daqueles que não têm direitos?
Bruto da Costa era sóbrio, mas apaixonado e incisivo. A conversa avançou com esse brilho pela noite fora e ele rematou-a com a leitura de um poema que não voltei a encontrar, mas cuja imagem central não me saiu da cabeça. Dizia mais ou menos isto: afundo as mãos esforçadamente na terra, lavro com fadiga a dureza do meu campo, sei que ele me pedirá todas as forças. Mas quando me sento de madrugada a olhar para o meu campo e vejo-o coberto levemente por uma camada de orvalho, penso para comigo: eu fulano de tal, governador do orvalho. Ao longo dos anos pude ouvir muitas vezes Alfredo Bruto da Costa, sentindo-me particularmente instigado pela sua visão. E se tivesse de encontrar uma designação para ele seria esta, a de governador do orvalho.
* Cardeal, perfácio do livro “Que fizeste do teu irmão? Um olhar de fé sobre a pobreza do mundo” da autoria de Alfredo Bruto da Costa (edição póstuma).
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