A questão chave é esta: o que torna um vinho tinto capaz de envelhecer bem durante muitas décadas? Devo enfatizar que estamos a falar de envelhecimento no contexto do desenvolvimento positivo, não apenas de sobrevivência. Não tenho todas as respostas, mas tenho algumas suspeitas muito fortes, com base em muitas provas e diálogos com enólogos e cientistas do vinho.
Jamie Goode *
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Um dos aspetos incomuns do mundo vinho é que a cultura dos vinhos de topo está inextricavelmente ligada à cave. Vinho e envelhecimento são aparentemente inseparáveis.
Quando falamos de envelhecimento de vinhos, podemos distinguir aquele que ocorre nas adegas, antes da saída para o mercado, do envelhecimento que acontece quando o vinho repousa em garrafa.
São muito poucos os vinhos que saem para o mercado assim que são feitos. Em vez disso, são submetidos ao que os franceses chamam de ‘élevage’. Precisam de tempo para se integrarem após o fim da fermentação. Demoram vários meses para que fiquem límpidos, para que os sabores se casem e o vinho seja dado como pronto para engarrafamento. Por vezes, este processo de estágio pode mesmo prolongar-se por mais um inverno, com o vinho a passar dois anos em cave. Em raras ocasiões, é ainda mais longo.
Claro, desde que se faz vinho, que há vinhos destinados ao consumo precoce. Penso na fabulosa tradição dos vinhos de talha do sul alentejano, onde estes belos recipientes de barro eram vazados no dia de São Martinho, em meados de novembro, logo após a vindima. Deve ter havido grande alegria em provar o vinho novo mas, na primavera seguinte, ou já tinha acabado, ou não estava tão fresco. Ou, mais a norte, o Vinho Verde tinto de Vinhão, cheio de cor e sabor, alegremente inacabado com todo aquele ácido málico não degradado. Estes não são vinhos para envelhecer, mas para beber com alegria, tal com a maior parte do vinho branco da região, destinado a ser consumido na juventude.
Mas, quando se trata de vinhos de topo, seja qual a forma em que for definido, existe um contrato não escrito de que devem ser dignos de envelhecimento. As garrafas dormem por muitos anos numa cave fresca, talvez um pouco húmida. Exigem cápsulas para impedir que os insetos perfurem as rolhas. E há a alegria de encontrar a janela de consumo ideal para cada colheita. Uma coisa é certa: não há pressa em beber estes vinhos, porque foram construídos para envelhecer. Sim: algumas colheitas não serão tão boas e não valem a pena envelhecer. Mas é pelos bons anos que as pessoas anseiam, pagam bem e depois dão-se ao trabalho de guardá-los.
Ainda hoje, os grandes vinhos surgem ligados a este conceito de envelhecimento. Todos os anos, os melhores vinhos de Bordéus vendidos nas campanhas en primeur acabam guardados em caves de todo o mundo como uma ‘commodity’. A suposição é que estes são vinhos para 50 anos e que o seu valor aumentará com o tempo. Como dizem os mercados financeiros, porém, o desempenho passado não é garantia de desempenho futuro. A vinificação, a viticultura e até o clima mudaram nas últimas décadas. Com estas mudanças, o potencial de envelhecimento de alguns dos vinhos clássicos do mundo também mudou?
Acidez e taninos, as chaves
Diria que as mudanças na vinha e nas adegas resultaram em vinhos com perfil sensorial diferente dos seus antecessores. Sim, os vinhos são muito mais consistentes agora: lembro-me de Véronique Sanders, da Haut-Bailly, afirmar que as grandes colheitas do passado foram acidentes, insinuando que o facto de termos muito mais colheitas ‘grandes’ hoje deve-se à evolução do conhecimento vitícola e enológico. E muitos diriam que os vinhos que temos hoje são muito melhores em qualidade. São, certamente, muito mais fáceis de apreciar enquanto jovens.
A questão chave é esta: o que torna um vinho tinto capaz de envelhecer bem durante muitas décadas? Devo enfatizar que estamos a falar de envelhecimento no contexto do desenvolvimento positivo, não apenas de sobrevivência. Não tenho todas as respostas, mas tenho algumas suspeitas muito fortes, com base em muitas provas e diálogos com enólogos e cientistas do vinho.
Em primeiro lugar, a acidez parece ser muito útil. Os tintos com maior acidez (e menor pH) parecem evoluir muito positivamente ao longo do tempo. Mas a acidez, por si só, não é suficiente – as uvas colhidas com boa acidez também possuem outros atributos que podem ser úteis. Isso é indicado pelo facto de as uvas colhidas sobremaduras, com sabores muito extraídos e baixa acidez, às quais é adicionado ácido tartárico na adega, não tendem a originar vinhos capazes de envelhecer bem. Outro elemento que acompanha a alta acidez é a composição tânica da uva. Não é que haja mais taninos nas uvas colhidas mais cedo, apenas que esses taninos estão num estado diferente. À medida que as uvas amadurecem, a forma dos taninos muda. Os consultores modernos geralmente procuram fazer vinhos tintos ricos e escuros com muito sabor, mas taninos macios. É por isso que gostam de colher tarde, porque as películas das uvas perdem sabor com mais facilidade e há menos taninos e ácidos intrusivos nas uvas. Uma maneira de o ver seria como os telómeros no final dos nossos cromossomas: à medida que envelhecemos, à medida que nossas células se dividem cada vez mais, os telómeros ficam gradualmente mais curtos, o que influi na esperança de vida. Na uva, os taninos têm vida útil (falando metaforicamente). Ao colher as uvas tarde, os taninos já passaram por grande parte da sua vida útil. Ao usar a microoxigenação para tentar dar uma sensação de boca mais suave, será um pouco da vida dos taninos que é consumida. Os vinhos tintos modernos – mesmo os escuros, concentrados, intensos, polidos e caros – muitas vezes terão queimado grande parte da sua vida útil potencial. Eles serão ótimos (se se gostar desse tipo de vinhos) jovens, mas não mostrarão verdadeiro potencial de guarda.
Para fazer um vinho envelhecer, é preciso que as uvas tenham sabor, mas devem ser colhidas ainda com boa acidez, e os taninos devem ter vigor e firmeza. A fermentação deve ser bem gerida para extrair o suficiente para dar estrutura ao vinho, mas não pode ser desajeitada. Às vezes, um envelhecimento mais longo antes do engarrafamento prepara o vinho para uma vida mais longa. Talvez a maturação por dois anos em carvalho de maior capacidade e mais velho resulte melhor do que 11 meses em barricas novas de carvalho mais pequenas. O principal é que alguma capacidade de consumo enquanto jovem terá que ser sacrificada se o objetivo pretendido for um vinho de 50 anos. Muito poucos vinhos modernos, mesmo os mais caros, são vinhos de 50 anos.
Claro, não queremos que todos os vinhos sejam dignos de envelhecimento. Há lugar para vinhos bonitos e jovens, e esses são muito mais úteis para a maioria das ocasiões de consumo e para a maioria das pessoas. Afinal, quem tem uma cave em casa por estes dias? O máximo que podemos almejar é um armário de vinhos, e estes enchem-se rapidamente. Adoro vinhos tintos de estilo mais leve, feitos de uvas colhidas cedo e infundidas em vez de extraídas. A maioria destes duram alguns anos, mas não são feitos com a intenção de envelhecer por muito tempo e têm muito a perder por serem guardados demasiado tempo.
Seria triste, porém, ver o desaparecimento dos vinhos velhos. Esta é uma parte valiosa da cultura do vinho, e precisa de gente sábia, com visão e habilidade para manter o segmento.
* Artigo publicado originalmente na Revista de Vinhos – A Essência do Vinho.
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