Vivemos um momento tão crítico para a agricultura nacional, em especial para os pequenos e médios agricultores familiares, nesta encruzilhada de várias crises, caraterizada pelos aumentos brutais nos preços dos factores de produção, com particular destaque nos combustíveis e energia, e com uma forte componente especulativa; pelos constrangimentos decorrentes das sanções impostas pela União Europeia à Rússia e da guerra com a Ucrânia, sobretudo ao nível da energia, fertilizantes, cereais e vários materiais essenciais para equipamentos agrícolas e industriais; pelo contínuo esmagamento do rendimento dos agricultores, também determinado pela ditadura da grande distribuição; e pela seca.
Por Vítor Rodrigues *
Estas crises vieram sublinhar a importância das propostas da CNA para a agricultura portuguesa e da absoluta necessidade, agora ainda mais urgente, de construir a soberania alimentar no nosso país.
Neste cenário, é necessário ir muito mais longe nas medidas urgentes para o sector.
É necessário regular os preços dos combustíveis, fazendo regressar o gasóleo agrícola aos preços de final de 2020.
É urgente intervir junto dos vários agentes da cadeia de produção – distribuição – comercialização para que sejam pagos preços justos aos produtores, e legislar no sentido de impedir a venda com prejuízos em todos os elos desta cadeia.
É urgente combater de forma decidida a especulação em torno quer dos preços de outros factores de produção (electricidade, fertilizantes, fitofármacos, rações para alimentação animal), quer dos preços dos bens agro-alimentares no consumidor, desde logo quanto aos preços praticados pelos hipermercados.
É urgente combater os danos provocados por animais selvagens, que destroem as culturas um pouco por todo o país, e garantir compensações dignas e processos desburocratizados para os prejuízos causados por javalis, lobos e outros animais.
Mas estas são apenas medidas urgentes, capazes de responder à conjuntura que vivemos, e que não se compadece com a política de anúncios sucessivos de medidas muito insuficientes, e que se arrastam sem concretização.
Estas crises trazem desafios de natureza estrutural, que exigem alterações profundas no rumo da política agrícola e florestal, na União Europeia e em Portugal.
Em vez de uma política injusta que paga por superfície e que afasta muitos milhares de agricultores do acesso a quaisquer ajudas, necessitamos de uma política que tenha na produção e na utilização do factor trabalho factores essenciais no acesso e na atribuição das ajudas. Todos os que produzem devem poder aceder às ajudas.
Precisamos que a modulação e o plafonamento sejam a regra em todos os apoios, no sentido de se corrigir a injustiça que leva a que 8% dos agricultores, ou proprietários agrícolas, receba cerca de 70% das ajudas directas. Precisamos de reforçar, e não de dificultar, o apoio aos pequenos e médios produtores, e é por estas razões que defendemos que o regime da pequena agricultura deva ser colocado no patamar máximo de 1250 euros para todos os agricultores que adiram a este regime.
Precisamos de uma política que garanta o acesso à terra a quem quer produzir, e que possibilite o apoio a todos quantos se queiram instalar na agricultura, em especial os jovens e as mulheres.
É fundamental avançar com um programa de compras públicas para fornecimento de cantinas e refeitórios públicos, que se abasteça em pelo menos 30% na agricultura familiar, e dê preferência à origem local e a sistemas produtivos mais sustentáveis.
É necessário apostar mais no estabelecimento de circuitos curtos de produção e comercialização, com a dinamização dos mercados locais, a sua acessibilidade aos produtores, e um regime fiscal que permita aos pequenos produtores vender de forma desburocratizada.
É imperiosa a implementação de um programa de produção de cereais, em particular dos praganosos, que garanta um nível mínimo de segurança no abastecimento destes produtos, e que tire partido das melhores tecnologias disponíveis.
É fundamental concretizar plenamente o Estatuto da Agricultura Familiar, incluindo a criação de um regime de segurança social que reconheça o papel dos cônjuges nas explorações. Aliás, são necessárias medidas que reconheçam o papel das mulheres agricultoras e rurais, incluindo o acesso a direitos e serviços públicos essenciais, como a saúde, a educação, os correios e comunicações digitais, ou os transportes públicos.
É fulcral reconhecer o papel dos baldios no ordenamento do território, da floresta e das actividades agrícolas, pondo fim à sua discriminação no acesso aos apoios a projectos de gestão da paisagem, antes valorizando as experiências positivas da autogestão. É necessário intervir no mercado das madeiras, sobretudo das autóctones, dar meios ao ICNF, e acabar com a sua inoperância e arrogância na forma como lidam com produtores agrícolas e florestais, e com os baldios.
É necessário retirar a agricultura dos acordos de livre comércio, sob pena de estes se constituírem como factores agravados de pressão sobre a viabilidade de muitos agricultores, e da sustentabilidade da nossa produção agrícola.
Sem estas medidas estruturantes, a soberania alimentar continuará a ser uma miragem, aprofundando-se as perigosas dependências que, face a qualquer instabilidade, nos empurrarão para mais crises e constrangimentos.
Mas estas medidas são não só necessárias como possíveis, assim haja vontade política!
* Dirigente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).
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