A labrega do segredo

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“Labrega murtoseira” em exibição no Museu de Ílhavo.
Natalim3

A construção de uma embarcação, extinta ou em vias de extinção, é um acto que deve ser divulgado, com as devidas cautelas para não perturbar o mestre, com acompanhamento de técnicos ou membros da entidade promotora, mas DIVULGADO.

ahcravo gorim *

o segredo é a alma do negócio”

(ditado popular)

Que seria de nós sem memória? A nossa, a que vamos encontrar deixada por outros, seja ela qual for, faz de nós mais sabedores e conhecedores do que somos. É de memórias esta crónica.

Em 2009, enquanto convidado das VII Jornadas da Gândara na Praia de Mira, apresentou-se-me uma jovem aveirense dizendo estar a preparar tese de mestrado sobre “Embarcações Tradicionais da Ria de Aveiro”. Porque sempre entendi que saber escondido é saber perdido, apresentei-a a amigos com trabalho na área e, mais tarde, desafiei-a a fazer a tese sobre a última “labrega murtoseira” a trabalhar na ria.

A “Rosinha” do falecido Ti Manel Viola (Calado), da Bestida, que ainda praticava a arte do saltadoiro e cuja companha era, à data, formada pelo Ti Manel e o filho Alfredo, com quem mais tarde fui à pesca e das 8 horas que com eles passei na ria resultou um fotofilme com descrição da arte e que pode ser visto no youtube.

A tese foi defendida, estive presente, embora não tenha conhecimento de qualquer publicação, em papel ou na net, que a aborde.

Em Janeiro deste ano, na minha crónica “O moliceiro património nacional, quando?”, abordei o facto de a “bateira avieira”, bastarda da “labrega murtoseira” já ser património nacional.

“Rosinha”, feito pelo artesão da Torreira, Ti Henrique Afonso.

Numa das minhas “investigações” a propósito de um tema que abordarei em futura crónica, contactei um mestre construtor de Pardilhó e, ao longo da conversa que tivemos, disse-me ter-lhe sido encomendada a construção de uma “labrega murtoseira” tendo lhe sido apontado como modelo uma existente na Costa Nova. Disse-lhe que não precisava de ir tão longe, que tinha uma ao pé da porta, a “Rosinha” dos Violas, na Bestida. Que desconhecia, disse, mas que iria ver.

Em Junho quando me encontrava de férias na Torreira fui visitar o mestre, para colher informações de que necessitava. Lá estava a “labrega murtoseira” que fotografei e filmei no estado em que estava. Concluído o objectivo que me levara ao estaleiro, na despedida foi-me dito: “Olhe que as fotografias e o filme não podem ser publicados, são segredo. Já cá esteve f…. e foi-lhe dito isso, por isso não publique nada”.

“Rosinha” a sair para a pesca.

A informação caiu-me mal, não por vir do mestre, que respeito, mas por ter origem em alguém que se assumiu como representante da Associação dos Amigos do Museu de Ílhavo, de que sou sócio, que encomendara a construção para posterior oferta ao Museu.

As fotos e o filme, breve clip de vídeo, continuam em “segredo”. Por respeito ao mestre e à palavra que lhe dei. Não as publico até acontecer o que vai acontecer. E o que é?

No dia 8 de Agosto, dia de aniversário do Museu de Ílhavo, tive de ir fazer um tratamento a Aveiro e no regresso, lembrei-me de ir ao Museu. E lá estava a “labrega murtoseira” em exibição. Em conversa com o Professor Álvaro Garrido soube que estava a ser editado um filme sobre a construção da embarcação.

Estava explicado o segredo. Entendi também porque é que há alguns anos quando foi construída pelo mesmo mestre uma “ílhava”, estando eu perto e sendo “amigo” dos promotores da construção, e sócio da Associação dos Amigos do Museu de Ílhavo, nada me foi dito.

Se, como diz o povo, “o segredo é alma do negócio”, se a construção da “labrega murtoseira” e, por dedução a da “ílhava” foram feitas em segredo, será que há negócio por detrás? No sentido estrito do termo creio que não, que não se trata de questões monetárias, mas de um outro negócio “ o do nome e da imagem”.

Quem me conhece sabe que dou tudo o que sei sem qualquer problema – o saber só vale se distribuído – também sabe que não precisando de fazer carreira, nem andando atrás de títulos ou prebendas, quando não gosto de certas atitudes manifesto a minha discordância.

Enquanto sócio da Associação dos Amigos do Museu de Ílhavo e amigo de alguns dirigentes, que me conhecem bem – penso eu – sinto-me defraudado.

A construção de uma embarcação, extinta ou em vias de extinção, é um acto que deve ser divulgado, com as devidas cautelas para não perturbar o mestre, com acompanhamento de técnicos ou membros da entidade promotora, mas DIVULGADO. A museologia moderna é aberta e viva. É assim que o Museu de Ílhavo a entende.

O segredo será desvendado e os “artistas” subirão ao palco, o teatro do mundo apresentará mais uma peça e haverá aplausos da plateia. O mundo por detrás do palco, sabedor de todos os segredos, continuará de mãos caídas e irá sentar-se ao lado da “labrega murtoseira”, quem sabe lá dentro, e talvez lhe pergunte: serás tu a única labrega?

Como já escrevi algures, e era um prenúncio do que aqui deixo “a usura é coisa de financeiros, o saber só conhece a partilha”. Grande confusão, ou não, por aqui anda.

* mestre de artes e ofícios.

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