A inteligência artificial ou como Prometeu regressa à cena do crime

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Tecnologia.
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Devemos precaver-nos contra o pecado da húbris. Os gregos antigos, esse povo luminoso, mas idóneo para a dor, temiam-na. Sabiam que essa mistura de orgulho e arrogância os podia perder. Não raramente a húbris dos humanos convocava a fúria do Olimpo e sabemos como os deuses eram criativos e cruéis nas suas punições. Que o digam Édipo, Sísifo ou Prometeu…

Por José Figueiredo *

Prometeu, que já tinha algumas máculas no cadastro, passou das marcas quando roubou o fogo sagrado do Olimpo para o dar aos humanos. É esse gesto fundador (um crime na perspetiva dos deuses) que faz de nós uma espécie inventiva e tecnológica. É difícil imaginar algo mais prometaico que a inteligência artificial. Quando Prometeu roubou o fogo aos deuses, tratava-se de reparar uma injustiça – os deuses tinham privado os humanos do fogo de modo a obrigá-los a comer a carne crua. É certo que Prometeu e os humanos tinham algumas culpas no cartório, contudo, a punição parecia manifestamente excessiva. Pela minha parte, perdoo Prometeu.

Com a IA não se vê que injustiça possa estar a ser reparada. Com a IA não queremos apenas um módico do privilégio dos deuses, aquela centelha de divindade a que, talvez, tenhamos direito – queremos criar uma inteligência potencialmente infinita, queremos ser Deus, queremos criar deuses. E, agora, que pulámos a cerca, não se iludam – não há retorno. Que consequências vêm por aí? Livremo-nos da húbris de pensar que sabemos ou podemos saber. Quando, durante a guerra fria, os militares americanos trabalhavam para criar ume rede de comunicações capaz de sobreviver a um ataque nuclear soviético (estruturada em nós, de tal maneira que a destruição de alguns deles não comprometesse o funcionamento geral) ou os engenheiros do CERN sonhavam com uma rede que disponibilizasse para todos, instantaneamente, a produção científica de cada um, nem uns nem outros sabiam que estavam a inventar a internet.

Muito menos podiam imaginar que passados alguns anos existiria uma empresa chamada Google que gera 60 biliões de dólares por ano de lucro e tem 87% de quota de mercado nas pesquisas online no mundo ocidental. Quem podia imaginar que vinham por aí as redes sociais que mudaram radicalmente a forma como a informação se gera e circula no espaço público? Também agora não podemos antecipar as consequências da IA. O mais que podemos fazer é elencar riscos. Mesmo esse exercício é limitado porque só podemos discorrer sobre os desconhecidos que conhecemos, não nos é dado pensar sobre os desconhecidos que não conhecemos. Sabemos, por experiência, que a revolução nas tecnologias de informação e comunicação nos trouxe muitas coisas boas, mas, também, duas consequências negativas: a formação de monopólios artificiais e o exacerbar das desigualdades.

O mundo digital é hoje dominado por cinco empresas, todas americanas, imensamente ricas e poderosas: Google, Apple, Amazon, Microsoft e Meta-Facebook. Juntas valem quase um quarto da capitalização bolsista americana ou se quisermos um décimo da capitalização à escala global. O poder de mercado destas empresas nas áreas em que atuam é esmagador pelo que, mesmo que não sejam monopólios formais, têm um verdadeiro poder monopolista no sentido de poder manifestamente excessivo nos respetivos mercados.

Não são monopólios naturais no sentido em que não resultam da natureza das coisas, resultaram da demissão dos Estados e respetivos reguladores de cumprir o seu dever de assegurar múltipla e saudável concorrência. A ausência ou escassez da concorrência é um mal terrível. Limita a iniciativa, diminui a inovação, encarece os produtos, etc. Já o alargamento da desigualdade tem muitas causas. Mas a revolução tecnológica (de par com a globalização descontrolada) é talvez o caso mais sério. A revolução tecnológica eliminou muitas profissões dos escalões intermédios. Já não há dactilógrafas, as telefonistas são uma raridade e muitas das tarefas de escritório, que em tempos formaram uma boa parte da classe média, simplesmente desapareceram. Claro que foram criados outros empregos. Os Estados Unidos estão atualmente em pleno emprego, na Europa faltam trabalhadores.

O problema é que os empregos que, entretanto, foram criados são, em muitos casos, empregos precários e mal pagos. Da riqueza colossal que a revolução tecnológica permitiu criar, a maior fatia beneficiou uma parte muito pequena da população. Os números dos últimos anos são tão esmagadores que chegam a parecer incredíveis. Na última década 54% da riqueza criada foi captada por 1% da população, mas nos últimos dois anos, essa monstruosa cifra subiu para 63%!

Mesmo que um módico de bom senso nos preserve da tentação de prever o que a IA nos vai trazer, acredito não ser arrogância pensar que o todo o mal que já vimos com a revolução nas tecnologias de informação e comunicação, a IA pode fazer, mas com esteroides. Com a IA podem estar em causa não apenas profissões de classe média, mas também profissões de topo. Muito do trabalho atual de médicos, advogados, jornalistas, engenheiros, por exemplo, pode ser substituído por máquinas. O potencial de agravamento da desigualdade é imenso. Se agora mais de metade da riqueza adicional é captado por apenas 1% da população, com a disseminação da IA esse número atroz pode subir e, potencialmente, subir muito. Um conhecido político dizia que os políticos eram os únicos animais que tropeçavam duas vezes na mesma pedra. Espero que o aforismo não se aplique aos políticos atuais pelo menos no que concerne à regulação da IA.

Não podemos permitir que, com a IA, se formem novos monopólios artificiais ou que se reforcem os que já existem. O facto de as duas empresas mais avançadas no campo da IA estarem, de alguma forma, ligadas a dois dos atuais monopólios (Microsoft-OpenAI e Google-DeepMind) não é tranquilizador. É urgente a criação de um quadro regulatório público forte da IA – não podemos contar (como, de alguma forma, fizemos em relação à revolução nas tecnologias de informação e comunicação) apenas com a autorregulação dos operadores. Finalmente, mesmo com todo o empenho e boa vontade dos políticos, não será, porventura, possível evitar efeitos indesejáveis sobre a distribuição da riqueza. Serão necessárias políticas públicas para lidar com o caso e esperemos que sejam mais efetivas do que aquelas que tentaram mitigar os efeitos da revolução tecnológica anterior.

* Economista. Artigo publicado originalmente no site Solidariedade.pt.

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