A gripe, eu e os livros

1824

Um livro nunca é só um livro, depois de o lermos o livro é uma parte de nós, da nossa história, do sermos mais. Porque um livro só nos acrescenta.

ahcravo gorim *

O livro, qualquer livro é a VIAGEM por excelência – a que o autor fez até o começar, a feita ao escrevê-lo, a que o leitor faz ao lê-lo e a que fará depois de o ter lido. Quantas viagens encerra um livro!

Ler é um factor de liberdade e de libertação, por isso houve quem entendesse que a felicidade residia na ignorância e fizesse desse princípio um dos pilares do seu poder. Chamaram-se, chamam-se, chamar-se-ão sempre, ditadores.

Apesar de todas as vacinas, este ano apanhei a minha dose de gripe, não muito forte porque vacinado, mas tive-a e valeu-me a saúde 24. Enquanto a cabeça pesava, não consegui ler e é essa foi outra doença.

Pensei, já com a cabeça mais leve, nos meus livros, no como são importantes para mim hoje, como é importante saborear a leitura sem pensar no que amanhã acontecerá ao livro. Porque os livros também têm histórias para contar – mais uma viagem. Pensar no que acontecerá aos meus livros, depois de mim, não resolve o problema deles, nem o meu, só me acrescenta problemas, então o melhor é lê-los, senti-los, falar deles.

Neste apontamento breve queria falar de três livros que nas minhas estantes ocupam lugar de relevo – que, sem serem mais que os outros, são mais de mim -, “Os pescadores” de Raul Brandão, edição ilustrada dos Estúdios Cor, 1957, “A Ria de Aveiro”, de Augusto Nobre, Jayme Afreixo e José de Macedo, edição da Imprensa Nacional, 1915 e “Gente” de Eduardo Gageiro, Editorial O Século, 1971.

Sempre me interessaram os livros pelo seu conteúdo e não por outras razões. Quando, nos princípios da década de 80, o poeta Joaquim Namorado me quis vender, a preço de amigo, a primeira edição de Orpheu, respondi-lhe: Para quê Dr. Joaquim, já os tenho – tinha a edição fac- – similada da Ática. Hoje, mais maduro, tê-los-ia comprado, não pelos livros, mas como memória do amigo – mas isso é outra história.

Os três livros comprei-os porque me surgiram e porque não os tinha. Não são primeiras, nem décimas edições, são edições únicas. Interessante é que dos três, dois têm características especiais nas dedicatórias. “A Ria de Aveiro” tem uma dedicatória de Jayme Afreixo a um amigo, “A Gente”, tem a dedicatória de Eduardo Gageiro, confirmada a assinatura pelo autor, aos professores que lhe ensinaram as primeiras letras.

O livro de Gageiro foi quase dado porque tem uma folha com defeito. Os possíveis compradores que o folhearam antes de mim e o podiam ter comprado, desistiram quando viram esse defeito. Mas se o livro vale alguma coisa, em termos de história de vida de Eduardo Gageiro, é pela dedicatória. É preciso sentir os livros, folheá-los, cheirá-los – como faz António Lobo Antunes com as edições das suas obras.

Quanto a “Os pescadores” em edição ilustrada, pensei nunca os arrranjar e, de repente, aparece um anúncio de venda. Quando depois de o folhear “com carinho” página a página e percorrer todas as fotos, à mesa do café, ao regressar a casa foi abraçado a ele que subi os degraus. Só depois me apercebi do gesto e de como inconscientemente os afectos se manifestam. Era como se mais um filho, mais um neto. Não era só um livro.

Um livro nunca é só um livro, depois de o lermos o livro é uma parte de nós, da nossa história, do sermos mais. Porque um livro só nos acrescenta.

Ler, ler, ler. Ler muito só faz bem. Ter um orientador de leituras, uma referência que nos vá dando dicas sobre o que ler, dentro do nosso caminho, é importante – devo muito a Joaquim Namorado e aos livros da biblioteca de meu pai.

A minha neta mais velha quando vinha ter comigo, pequenita, com birra ou a chorar, bastava-lhe ver um embrulho que já sabia ser um livro, para estender as mãozinhas e parar com birras e choros.

* mestre de artes e ofícios.