Até 1979, a secular “Feira de Março” realizou-se no Rossio. Começava a 25 de Março e terminava a 25 de Abril, podendo prolongar-se mais uns dias quando a data limite calhava muito perto de um domingo ou se o mês corresse mal para o negócio, por exemplo, em caso de muita chuva, sendo então sido concedidos mais uns dias, a pedido dos feirantes.
Por Diamantino Dias *
Anualmente, era construído na entrada do largo, entre o encontro das ruas João Mendonça e Barbosa de Magalhães e o Canal Central, um grande pórtico em madeira no qual se instalavam os Serviços Sonoros, à direita de quem entrava, e um Posto de Informações Turísticas do lado contrário.
Ao longo do Canal Central e da rua Barbosa de Magalhães, montavam-se as barracas camarárias – todos os restantes abarracamentos eram propriedade dos feirantes –, onde se vendia uma grande variedade de produtos: bijutarias, cutelarias, cerâmica decorativa e utilitária, marroquinarias, retrosarias, atoalhados, fazendas, brinquedos, revistas e livros antigos, etc., etc., etc.
A zona compreendida entre estas barracas era conhecida pelo “Picadeiro” e, nela, as pessoas, em especial aos domingos, passeavam interminavelmente para trás e para a frente. Foi neste local que surgiu, na década de 1950, o primeiro espaço dedicado essencialmente à exposição publicitária de produtos: um polígono rectangular, cor de vinho, com outros dois mais pequenos, sobrepostos em pirâmide, onde estavam colocadas garrafas vazias de uma das Caves da Bairrada, conjunto este circundado por uma vedação de corda, apoiada em estacas.
Ao fundo do “Picadeiro”, existiu, nas décadas de 1940/50, uma “Casa de Chá” – grande construção em madeira, pintada de azul claro, cujo acesso era feito por uma ampla escada e integrava uma galeria com esplanada –, pertencente à Câmara e que era anualmente concessionada. Entre esta edificação e as preditas barracas camarárias situadas ao longo do Canal Central, montava-se um palanque para exibição de grupos folclóricos, bandas e conjuntos musicais.
Paralelo ao Canal das Pirâmides, organizava-se um arruamento destinado à venda de maquinaria diversa, alfaias agrícolas e, ainda, de guarda-chuvas, chapéus e roupas, principalmente de homem. Alguns destes últimos feirantes, por exemplo, o “Lopes de Penafiel”, acabaram por se instalar na cidade, pelo que se pode dizer que foi deste sector que nasceu o “Pronto a Vestir” em Aveiro.
O “Circo” – os mais frequentes eram o “Luftman” e o “Mariano” – montava a tenda na esquina das palmeiras, no extremo da rua João Afonso de Aveiro. Seguiam-se, até à curva deste arruamento, algumas instalações de que cito as mais usuais: encostado ao “Circo”, um “Estabelecimento de Bebidas e Petiscos”, a seguir, “Barracas de Tiro” – pelo menos duas, cujas sexi-empregadas convidavam, com vozes super-insinuantes, os potenciais clientes para um tirinho ao alvo –, o “Comboio Fantasma”, a “Mosca Sábia”, a “Fornalha Infernal”, etc.
Depois da curva e até à rua Barbosa de Magalhães, onde havia uma segunda entrada com portão, ficavam as várias tendas de “Louças Artesanais” e a “Barraca da Viúva” que era também conhecida pela “Barraca do Zequinha”, porque expunha, na fachada, um pequeno boneco articulado com este nome, o qual distribuía, a troco de 5 tostões (¼ de cêntimo de euro), papeizinhos com a sina das pessoas; este abarracamento possuía “Marrecos” (era assim que chamávamos aos “Matraquilhos”) e duas “Gruas Eléctricas”, onde se podia ganhar, com alguma habilidade, bonecos de peluche ou pequenas garrafas de amostras de licores, de que ainda guardo alguns exemplares.
Todo este abarracamento servia, também, para vedar o recinto, dado que aos domingos, à tarde e à noite, se realizavam espectáculos, cuja receita, 1 escudo (½ cêntimo de euro) por pessoa, revertia para a entidade organizadora: a “Tertúlia Beiramarense”.
O miolo da Feira
O miolo da Feira tinha a seguinte constituição que, de ano para ano, apresentava poucas novidades. A Poente do supracitado “Picadeiro”, ou seja da actual Estátua de João Afonso de Aveiro, montavam-se as Pistas dos “Automóveis Eléctricos” – duas, sendo, usualmente, uma de andar à roda de um passeio central e outra de circulação livre, propiciando choques mais frequentes e violentos, custando cada corrida 25 tostões (1,25 cêntimos de euro) – e os “Carrosséis”, 1 escudo cada viagem (½ cêntimo de euro), sendo os mais renomados o “Oito” e o “Viagem à Lua” que devia o nome às suas altíssimas e vertiginosas lombas de 1,5 m de altura. Na área sobrante, alojavam-se os restantes “Divertimentos” e “Atracções”.
As “Farturas”, com pelo menos dois pavilhões, constituíam um dos principais chamarizes do certame: não havia ninguém, em Aveiro e arredores, que, pelo menos uma vez por ano, não fosse à Feira comer umas farturinhas polvilhadas com canela e açúcar, acompanhadas com vinho branco ou refrigerante ou levar uma meia dúzia para oferecer a um amigo ou a alguém que não tivesse podido deslocar-se. Chegaram a ter a concorrência espanhola dos “Churros de Don Pepe”, mas foi sol de pouca dura.
Os “Marrecos”, grande atracção para os rapazes, estavam sempre representados por vários feirantes e com diferentes tipos de mesas, havendo delas com fundo metálico, o que era raro e dificultava a execução dos chamados “truques” efectuados com os três atacantes, tornando o jogo muito mais rápido e diferente do praticado nos tradicionais e usuais bilhares com tampo de madeira, fundo este que permitia uma maior aderência, logo um melhor domínio da bola, dando vantagem aos mais tecnicistas.
O “Poço da Morte”, onde dois portugueses, Freddy e Betty, na dupla cruz da morte, arriscavam a vida, numa parede vertical, completamente lisa, com 7 metros de altura. Chegou também a vir a “Esfera da Morte” – grande bola construída com tiras metálicas, suficientemente espaçadas para permitir ver, no seu interior, um ciclista pedalar com tal velocidade que conseguia fazer uma volta completa, na vertical, ficando de cabeça para baixo; o nome que era publicitado era Fernando Moreira, para aproveitar a fama de um vencedor contemporâneo da Volta a Portugal.
Por vezes, apareciam fenómenos humanos, lembro-me da “Mulher Polvo” – uma menina albina – e de “Gabriel, o Gigante de Manjacaze”, com quem mantive uma convivência que, por se ter revestido de aspectos curiosos, poderei vir a narrar um dia.
Havia umas estruturas metálicas de dois tipos (em rampa acentuada ou circulares), chamadas “Comboios” que se destinavam a medir as forças dos jogadores. Consistiam em dois “rails”paralelos, ao longo dos quais se lançava um objecto em forma de torpedo, com um explosivo na ponta; quando atirado com força suficiente – e tinha que ser muita – era atingido um alvo, colocado no fim da linha, detonando-se a carga e provocando-se o consequente barulho e, ainda, a admiração do público, especialmente o do sexo fraco, já que este jogo, dadas as suas características, quase que só era praticado por homens.
As “Cadeiras Voadoras”, os “Carrosséis” e as “Pistas de Automóveis Infantis” eram outros divertimentos mecânicos que habitualmente vinham à Feira. Nos últimos anos, apareceram uma “Roda Gigante” e uma “Roda de Póneis”.
Grande variedade de Jogos, mesmo ilegais
Podia jogar-se uma grande variedade de Jogos, mesmo ilegais (neste caso às escondidas da Polícia), por exemplo, a “Vermelhinha”. Entre os autorizados e com instalações próprias, havia as “Roletas”, “Tômbolas” e similares. Os mais célebres foram um, em que os prémios eram tachos e panelas de alumínio, as “Corridas de Cavalos” e o do “Ratinho”, cujo altifalante, em dias ou noites de nortada rija, fazia chegar, até à Estação da CP, a mensagem Ai o filho da mãe do ratinho que não quer entrar!, que a seguir se decifra. Este jogo era constituído por uma grande mesa redonda, na periferia da qual estavam montadas dezenas de casotas numeradas; no centro, havia uma gaiola sem fundo, com um rato lá dentro. Os jogadores apostavam nos números dos compartimentos e, quando as rifas estavam vendidas em número considerado satisfatório, a proprietária levantava a gaiola, puxando um fio, e o rato acabava por fugir para dentro de uma das divisões, cujo número era o premiado. Acontecia, contudo, que o animal, por vezes assustado pelo barulho feito pelos participantes que rodeavam a tômbola, tentando atraí-lo para os seus números ou afastá-lo das entradas dos outros concorrentes, demorava a decidir-se por uma das portas e, daí, a exclamação veemente que se ouvia, com uma certa frequência, um pouco por toda a cidade, dependendo da direcção do vento.
Para completar esta descrição, cuja fidelidade só depende da minha memória (que já foi incomensuravelmente melhor), pois não consultei nenhuns documentos, creio que só me falta referir os “Vendedores de Pipocas”, de “Algodão Doce”, de “Tremoços e Pevides” e os chamados “Ceguinhos” – que cantavam e vendiam em folhetos coloridos o que agora se publica nas revistas cor de rosa, por exemplo, a história da fuga da cigana Carmencita, linda graça, / Abandonou sua raça, / Foi atrás de um sonho lindo… – e, ainda, os inevitáveis pedintes e carteiristas que, segundo me foi dito pela PSP, quando tive responsabilidades na organização da Feira, vinham todos do mesmo sítio e alugavam uma camioneta para se deslocarem, aos domingos, para este rendoso local de trabalho.
Fotos da Feira do Março no Rossio
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).