Nos finais da década de 1970, a Câmara Municipal de Aveiro acalentou a ideia de criar um grande Parque de Exposições que servisse de montra local, nacional e internacional para as empresas regionais. Entretanto, surgiu a “Exponor” que, por razões óbvias, atraiu as grandes indústrias do norte do Distrito, fazendo abortar essa excelente ideia que muito poderia vir a valorizar a nossa cidade.
Por Diamantino Dias *
No entanto, não só havia interessados no campo empresarial, donde, aliás, segundo creio, teria partido a sugestão, mas também já se teriam realizado alguns investimentos a nível de prospecção, estudos e projectos. Assim, e porque, de ano para ano, o Rossio se tornava cada vez mais exíguo para a “Feira de Março” que, continuando a manter essencialmente as suas características ancestrais de comércio e divertimentos, não oferecia condições para responder aos pedidos para nela se instalarem ”stands” publicitários, foi deliberado não só mudá-la, em 1979, para um local mais amplo, mas também dotá-la de estruturas, especialmente pavilhões, que permitissem meios para uma moderna e eficaz exposição de produtos comerciais e industriais.
O local escolhido foi o Cojo, num terreno em grande parte pertencente à Firma “Paula Dias”, situado na margem esquerda do Canal da Fonte Nova, sendo o “Parque de Feiras” projectado e construído para albergar quatro sectores. À entrada, uma zona comercial, com pavimento em ladrilhos de cimento, equipada com umas dezenas de barracas camarárias novas, de madeira, com tectos piramidais policromos, em material plástico. Em seguida, dois pavilhões, sendo um octogonal e outro rectangular – onde não se fazia, a não ser raramente, a venda directa dos produtos expostos –, ligados por uma passagem coberta. Depois, uma segunda zona comercial, subdividida em duas partes: uma com os velhos abarracamentos da Câmara, provenientes do Rossio, e outra onde se montavam as tendas pertencentes aos feirantes. Ao fundo, instalavam-se as “Atracções” e os “Divertimentos”.
Nessa altura, fui designado para assumir a direcção técnica do Sector de Feiras. O Vereador responsável pelo Pelouro era o Eng.º Carlos Boia. A primeira tarefa de que fui incumbido foi a de propor uma actualização do Regulamento da “Feira de Março” que, por um lado, dizendo respeito a uma realidade diferente – a Feira com comércio e divertimentos do Rossio – dificilmente se poderia adaptar à nova versão do certame e, por outro lado, continha medidas que não só eram impeditivas da renovação da Feira, mas também lesavam financeiramente o Município.
Por exemplo, existia um preço estipulado para cada tipo de instalação, os pretendentes pagavam-no e eram admitidos só em função da sua antiguidade. Assim, se surgisse um feirante novo, com um produto inovador que valorizaria a feira, não seria admitido caso todos os lugares já estivessem ocupados por concorrentes que já viessem há anos a Aveiro, sempre com os mesmos materiais e pagando todos a mesma coisa, quer estivessem no melhor ou no pior lugar.
Não vou, como é evidente, transcrever o Regulamento que elaborei e que obteve, sucessivamente, com algumas alterações de pormenor, a concordância do Vereador do Pelouro, do Executivo e da Assembleia Municipais. Irei, tão só, referir alguns dos pontos do seu articulado, que produziram resultados dignos de menção.
No que respeita aos comerciantes, foram estabelecidas bases de licitação, ficando a admissão e escolha de lugar dependentes do valor das propostas, desde que se verificasse que se tratava de participações com interesse e qualidade. O factor antiguidade só seria levado em consideração no caso de propostas do mesmo valor. Para os abarracamentos camarários, lembro-me que, no primeiro ano, as bases eram de 5 000 escudos (25 euros) por cada módulo novo e de 3 500 (17,5 euros) por cada antigo. Para as tendas dos feirantes foi definido o número de lugares posto a concurso para cada especialidade: por exemplo, dois lugares para os cobres, três para os candeeiros, três para as louças artesanais, etc.; já não faço ideia nenhuma de quais seriam os respectivos valores base das licitações.
Para a apresentação do novo Regulamento, os feirantes foram convidados para uma reunião, realizada uns dias antes da data limite para apresentação das propostas, a qual foi dirigida por mim, acompanhado pelo colega que anteriormente se ocupava dos assuntos relativos à Feira. O antigo Salão Nobre da Câmara estava cheio. Apresentei as novas normas que, como era de esperar, não obtiveram a concordância dos presentes que disseram preferir o anterior sistema. Estabeleceu-se uma discussão, mas de forma ordeira, entre mim e os feirantes. Depois de, entre muitas outras coisas, lhes ter explicado que não valeria a pena pedirem uma reunião com o Presidente da Câmara, dado que o Regulamento tinha sido aprovado pela Assembleia Municipal, única entidade que o poderia alterar, pediram-nos que saíssemos da sala, durante uns minutos, para que pudessem discutir e combinar, só entre eles, qual a decisão a tomar.
Quando voltámos, informaram-nos que tinham decidido, por unanimidade, que subiriam todos a base de licitação em 10 escudos (5 cêntimos de euro), pelo que, consequentemente, se voltaria ao anterior critério de escolha por antiguidade. Retorqui que, não sendo jurista, não sabia se essa hipótese seria legal, mas o que lhes poderia dizer é que se surgissem propostas de valores mais elevados, por parte de alguém que não tivesse comparecido à reunião ou mesmo de algum dos presentes que resolvesse faltar ao combinado, seriam essas as preferidas, logo, as primeiras classificadas, podendo os seus autores escolher os melhores lugares. Argumentaram que não deveriam ser aceites essas propostas; redargui que, nos termos regulamentares, teriam de ser consideradas e classificadas como acabava de lhes dizer.
Resultados: as propostas foram recebidas na data regulamentar; as bases de licitação foram substancialmente ultrapassadas, para surpresa de muitos. Para os módulos novos, houve uma que triplicou o valor. 1 m2 para a venda de pipocas valeu 30 000 escudos (150 euros). Note-se que a “Remuneração Média Mensal Garantida” era 7 500 escudos (37,41 euros). O feirante mais antigo, que ocupava, no Rossio, os primeiros módulos dos dois lados do abarracamento, ficou sem lugar, pelo que, considerando que se tratava de um caso especialíssimo, pois a sua família já vinha, ininterruptamente, à Feira, há largas dezenas de anos, expus o caso superiormente, tendo sido autorizado a participar, a título excepcional, não nas barracas antigas da Câmara para que tinha concorrido, mas, noutro local, com a sua tenda. Serviu-lhe de emenda, porque, nos anos seguintes, já apresentou propostas competitivas.
No que respeita às “Farturas”, aconteceu, mais tarde, um caso curioso: havia três terrenos, apareciam às reuniões anuais quatro interessados, mas só eram apresentadas três propostas. Averiguei e foi-me dito que o quarto concorrente – aliás, era o último descendente da família de vendedores de farturas mais antiga e conhecida da Feira – só se vinha mostrar; os outros pagavam-lhe, entre todos, umas largas dezenas de milhares de escudos, e ele ia-se embora, com a Feira ganha. No ano seguinte a esta constatação, consegui que fosse ligeiramente antecipada a data de apresentação de propostas e dei instruções para que não fosse comunicada essa alteração ao concorrente oportunista.
Perto das 17H30 do supracitado dia, fui procurado pelos três habituais homens das farturas, que me entregaram as propostas e perguntaram se o outro colega não viria. Disse-lhes que ele não tinha sido informado da alteração, mas que não poderia garantir que não tivesse tomado conhecimento dela através de outro feirante e enviado a sua proposta directamente para a Câmara, por correio devida e regulamentarmente identificado, o que eu só saberia, no dia seguinte, porquanto os Serviços de Secretaria municipais já estavam encerrados. Na dúvida, pediram-me os envelopes e entregaram-me outros que já traziam, contendo novas propostas de valor mais elevado, segundo me disseram, mas, mesmo assim, investindo menos dinheiro de que se tivessem que pagar as costumeiras luvas. O falso concorrente apresentou queixa. Oficialmente, informei que só tinha sido dado conhecimento da data aos concorrentes que tinham participado na Feira, nos últimos anos; particularmente, contei o que se estava a passar. Consequências: se gostasse de farturas, teria tido problemas, porque ninguém me queria aceitar dinheiro; há alguns anos, comprei uns ”churros”, na Costa Nova, a uma comerciante que ainda se lembrava de mim e foi uma guerra para os pagar.
No que respeita às “Diversões”, o caso foi muitíssimo mais complicado. A reunião realizou-se no mesmo Salão. Os participantes eram muito menos, mas muito mais organizados e agressivos. Fiquei a saber que não concordavam, nem com a licitação e muito menos com o sistema de apresentação de propostas em que qualquer interessado poderia concorrer, porquanto o que tinha vigorado, até aí, era o seguinte: a sua Associação, que abarcava todo o norte de Portugal, é que distribuía as diversões pelas várias feiras e festas que se realizavam na sua zona de influência. Informei-os de que a Câmara aceitaria propostas independentemente de os seus autores fazerem ou não parte daquela Associação.
Houve apelos, não unânimes, ao boicote, os ânimos exaltaram-se, fizeram-se ameaças, pelo que dei por terminada a reunião e mandei evacuar a sala. Acabou tudo numa cena de pancadaria entre eles, na escadaria dos Paços do Concelho, chegou-se ao ponto de se sacarem navalhas, foi chamada a autoridade, a ordem foi restabelecida e, exceptuando algumas contusões, os estragos mais evidentes traduziram-se nalguns dos vasos com flores, que ornamentavam as escadas, terem ficado partidos. Depois de toda esta zaragata, o concurso de admissão efectuou-se segundo as normas regulamentares e sem mais incidentes.
O único facto digno de registo, que se veio a passar referente a este sector da Feira, teve a ver com as áreas. Na véspera da inauguração, reparei que, aparentemente, as duas “Pistas de Automóveis Eléctricos” não eram do mesmo tamanho, mas que, para efeitos de pagamento, tinham apresentado exactamente as mesmas áreas. Pedi que um topógrafo municipal fizesse a verificação das superfícies de todas as “Diversões”. Quase nenhuma estava certa e se, nalguns casos, as diferenças eram pequenas, noutros eram substanciais. A Câmara recebeu, em consequência destas correcções, uma apreciável maquia; só teve que repor umas centenas de escudos, no caso da “Roda de Póneis”.
A falta de verificação prévia do conteúdo das “Fichas Electrotécnicas”, referentes às instalações ocupadas pelos feirantes, provocou um grave incidente, na primeira noite passada no novo “Parque de Feiras”. Mal se acendeu a iluminação geral, o recinto ficou às escuras e ouviu-se uma grande explosão, seguida de um incêndio, na cabine eléctrica onde estava instalado o gerador, situada no Pavilhão Rectangular.
Veio a verificar-se que este acidente tinha sido provocado por um excesso de carga que não tinha sido prevista, porquanto muitos dos feirantes, quando preencheram as obrigatórias preditas “Fichas”, onde tinham de especificar não só a iluminação, mas também toda a sua aparelhagem eléctrica, não tinham mencionado, por exemplo, os electrodomésticos que usavam nas suas instalações, onde, na maior parte dos casos, cozinhavam e até dormiam. A partir dessa data, passou a proceder-se a uma inspecção prévia das informações constantes dos supracitados documentos.
Para terminar o tema “Feira de Março”, direi que recebi algumas ameaças, felizmente nunca concretizadas, e muitas tentativas de ofertas – recordo-me de uns candeeiros, de uma caixa de ferramentas e de um terno de sofás, entre outras –, das quais aceitei uma: um pão de ló de Margaride. Comi-o, porque era novidade para mim, e retribuí com uma oferta de ovos moles. Mas não se tratava de nenhum pedido de favorecimento; foi, tão só, uma sequência de uma conversa sobre especialidades regionais.
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).