“Bento Sul” é um conjunto de poemas que versam a Torreira, a distância e a saudade: “porque há uma sirga que te prende e segura / a esta saudade que não tem cura”.
Por Maria Ana Rendeiro Marques *
Mas há uma casa antiga que nos amarra a um passado escrito em adobo e encharcado de mar. E o teu nome, Torreira, todas as manhãs o repito secretamente num canto escondido da memória.
O teu nome que é um eco de lonjura, uma promessa da infância recuperada naquela noite em que a nortada decantou as lágrimas adormecidas e com elas rasgou praias abertas.
O teu nome, Torreira, onde durante séculos as emoções reprimidas dos homens tantas vezes levantaram madeira com violência, onde a fúria incontida do mar exigiu resgates fabulosos e heróicos, onde apesar de tudo o sal de incontrolável pranto conservou ao longo dos invernos o betume dos barcos.
Onde as nossas mulheres, com os seus olhares compassivos cor de avelã, cor de azeitona, cor de xisto, toda a vida sossegaram e embalaram sonhos e desesperos, num elegante e discreto balouçar de canastras, construindo improváveis pontes entre as almas desgastadas.
Torreira, onde os dedos do futuro buscam insaciavelmente a história do que fomos, num horizonte sem fim de partidas e chegadas, raízes de moliço desenhadas no céu azulado das terras marinhas e na melancolia inconsolável dos regressos adiados.
“Romaria”
E o silêncio se fez areia
e o silêncio se fez povo
e bruscamente o silêncio
fez-se silêncio de novo.
Ficou o eco dos arcos
ao subir a avenida
ficou a sombra dos barcos
na mancha azul da partida.
Já não há multidão
desmancharam os carrosséis
já lá vai a procissão
abalaram os mercantéis.
Foi-se a última atalaia
foi-se a última bateira
e o silêncio se fez praia
e o silêncio se fez Torreira.
* Escritora. https://www.facebook.com/ana.marques.543
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