A descarbonização e a economia dos impactos no território

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Agricultura.
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O roteiro da neutralidade carbónica 2050 (RNC) e o plano nacional da energia e clima 2030 (PNEC), pela importância de que se revestem na reorganização da economia, pelo volume de investimentos que mobilizam, pelo lugar central que irão ocupar nas políticas públicas do Portugal 2030, pelo impacto enorme que terão nos territórios e nos respetivos mercados de emprego regional, provocarão, certamente, uma transformação profunda da economia e da sociedade portuguesas. Vejamos alguns aspetos desta grande transformação.

Por António Covas *

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Em primeiro lugar, a descarbonização da economia, na sua aceção mais ampla, é um complexo de políticas e medidas de política que se desenrola a vários níveis. No plano macro ela é, sobretudo, programação e controlo e, portanto, segue uma estratégia de vigiar e punir que a governação algorítmica já conhece muito bem. Isto acontece ao nível NUTS I. No plano meso-regional faz-se a administração das medidas de política de modo a conseguir conciliar planeamento operacional com flexibilidade na sua aplicação. Isto faz-se ao nível NUTS II e, agora, também, ao nível NUTS III. Finalmente, no plano dos micro comportamentos promove-se o exemplo do benchmarking mais adequado a uma administração de proximidade. Neste contexto, a emergência de plataformas colaborativas descentralizadas pode ser uma novidade, por exemplo, as comunidades locais de produção energética. Da prevenção à mitigação e da adaptação à transformação, eis todo um programa de ação para a próxima década e um complexo de políticas públicas de difícil administração.

Em segundo lugar, a descarbonização da economia será acelerada pela transição digital e acontecerá em todos os setores de atividade: no sistema de produção elétrica, no parque de edifícios, no sistema de transporte, nos processos industriais, na economia dos resíduos, nas práticas agrícolas sustentáveis, no reforço da capacidade de sequestro da floresta nacional, na descarbonização da administração pública e das cidades. A descarbonização será maioritariamente acessível através da nova economia digital: na cidade inteligente, na rede de energia inteligente, na economia circular, na economia da biodiversidade e dos serviços ambientais, na economia verde e alimentação, na economia azul, na economia da habitação e bioconstrução, na economia da saúde e dos cuidados primários e na economia da proteção civil e da biossegurança, entre os mais relevantes. As redes inteligentes tomarão conta destes setores e a desmaterialização de processos e procedimentos permitirá poupar muita energia.

Em terceiro lugar, a descarbonização da economia implica uma nova geração de investimentos públicos no território, para lá da infraestrutura de cobertura digital. Ora, a arritmia da inovação e do investimento em tantos setores que deviam estar conectados para produzir bons resultados ocasionará, inevitavelmente, um efeito de dissipação do próprio processo de descarbonização que é preciso ter em devida conta desde o primeiro momento. Se este efeito de dissipação e entropia acontecer, quem fica a perder são, geralmente, os micro e pequenos projetos que se inscrevem numa linha de coerência de médio e longo prazo e que neste enquadramento não encontram os benefícios de contexto e as economias de rede mais ajustados ao seu percurso.

Em quarto lugar, a descarbonização da economia cria uma outra estrutura de custos e benefícios de contexto que é necessário antecipar para o momento zero do RNC e do PNEC. Se não fizermos de forma proativa a pedagogia desta nova estrutura de custos e benefícios podemos estar a criar um elevado risco moral e uma nova geração de free raiders em todo o processo de descarbonização. Se a nova estrutura de custos e benefícios de contexto não for acompanhada de um sistema de incentivos apropriado e de uma nova despesa fiscal para o efeito, ninguém poderá garantir o sucesso deste grande empreendimento.

Em quinto lugar, a descarbonização da economia, ao alterar os custos e benefícios de contexto e a posição relativa dos agentes económicos nas cadeias de valor respetivas, muda, também, a sua posição relativa no que diz respeito às regras de concorrência. Estas alterações devem, por isso, ser balizadas pela política regulatória da União Europeia sob pena de se transformarem em fatores ativos de violação das regras de concorrência e prejudicarem o próprio processo de descarbonização da economia em curso. Os pagamentos por serviços de ecossistema, peça central da política de descarbonização, são considerados efeitos externos positivos e como tal devem ser aceites pela nova política regulatória.

Em sexto lugar, a descarbonização da economia, se for conduzida em profundidade, induz alterações profundas na estrutura empresarial, na repartição do valor no interior das fileiras económicas e nos mercados de emprego regionais. É preciso cuidar dos efeitos de aglomeração territorial, das novas assimetrias territoriais, da concentração empresarial e dos efeitos de exclusão social em consequência dos planos de energia e clima. Se em cada região NUTS II não cuidarmos do equilíbrio destes vários efeitos externos e não tivermos um nível de ataque para os programar e reparar a tempo e horas, teremos, seguramente, problemas graves pela frente em matéria de coesão territorial.

Em sétimo lugar, a descarbonização da economia pressupõe que somos capazes de descarbonizar as relações humanas. As grandes mudanças enunciadas anteriormente não chegam a lado nenhum se não existir um consenso político acerca de uma ética mínima, no plano dos valores, de uma economia dos comportamentos e da vida de relação: saber cuidar, com empatia e compaixão, saber receber, com hospitalidade e boa convivência, saber respeitar e partilhar, saber cooperar, ser responsável e solidário. Uma ética prática do cuidado, sob a forma de responsabilidade de si, dos outros e da terra-mãe, é uma condição essencial para este novo modelo de sociedade.

Em oitavo lugar, para descarbonizar a economia é, também, necessário descarbonizar o processo político e chegar a um compromisso entre dois grandes processos inteligentes que podem, eventualmente, colidir entre si: de um lado, a digitalização do território por via de uma particular governança digital e algorítmica, do outro, a territorialização do digital por via da convergência entre inteligência emocional e inteligência tácita ou implícita territorial que considero essencial para promover as transições e adaptações suaves na geografia e no corpo social das nossas regiões e territórios concretos.

Em nono lugar, é crucial o modo como a administração pública local e regional aproveita esta oportunidade para se articular com as populações locais que se expressam em comunidades online por via de plataformas locais de base tecnológica. Estamos a falar de modernização administrativa, mas, sobretudo, da articulação entre inovação tecnológica e inovação social no âmbito do que hoje se designa como a inteligência coletiva e a inovação colaborativa ou, dito de outro modo, como iremos ultrapassar a iliteracia tecno-digital e as lacunas de iniciativa empresarial, em especial, na formação e gestão das comunidades locais de produção de energia e da economia circular.

Finalmente, uma referência ao que eu designo como a arte da composição dos territórios-rede. De facto, depois de tudo o que fica dito, estamos perante uma transformação tão complexa e profunda que todos os territórios estão obrigados a encontrar rapidamente o seu modus operandi e a cadência própria da sua transformação estrutural. Por isso, eles têm de ser territórios-rede desejados, dotados com inteligência coletiva própria, e em especial um mix de inteligências – racional, emocional, natural e artificial – administrado por um ator-rede que acompanha o ritmo das transformações.

* Professor Catedrático na Universidade do Algarve. Artigo publicado originalmente em Agroportal.

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