“O PAN quer tirar os animais dos provérbios”. Este é um dos tristes recursos do novo jornalismo, uma espécie de esquizofrenia que chama para a capa o contrário daquilo que encontramos no interior.
Rui Medeiros Alvarenga *
“First they ignore you, then they laugh at you, then they fight you, then you win”. Mahatma Gandhi
Diz-se quase tudo sobre o jornalismo que se faz hoje. E tudo o que se possa dizer está amarrado a um dado indesmentível: há seguidores. E havendo público tem de haver oferta.
No início de 2011, o PAN (Pessoas-Animais-Natureza), recém-criado, ansiava por uma relevância que ainda não podia ter. Os dirigentes mais inexperientes pretendiam conquistar a mesma atenção que os partidos políticos que acumulavam quarenta anos de estrada. Cândidos, esperaram sentados que a frescura do seu manifesto político e o novíssimo paradigma de organização da sociedade, assente em grandes causas, fossem suficientes para despertar a atenção dos meios de comunicação social. Cedo perceberam que o PAN atravessaria o deserto; nenhuma notícia, nenhum gesto de reconhecimento.
Mas eis que a 5 de Junho do mesmo ano, o PAN alcançou 57.849 votos nas Eleições Legislativas e surpreendeu o País. Passou então a ter direito à subvenção do Estado, no âmbito da Lei de Financiamento dos Partidos Políticos. Levantado o véu, surgiram as caricaturas e os gracejos, o paternalismo maledicente, as analogias primárias que revelaram desconhecimento grosseiro em relação ao Partido e todo um mundo de insensibilidade e ignorância até então encoberto. Riram-se muito.
Com a eleição de um deputado para a Assembleia da República, em 2015, e o aumento da representação do partido em várias Assembleias Municipais, em 2017, os sorrisos amarelaram, e o PAN começou a ser notado. Deixou de ser uma sombra para começar a incomodar verdadeiramente. A incomodar porque o único deputado eleito do PAN promove, proporcionalmente, mais trabalho do que cada uma das restantes bancadas, porque trouxe para a agenda política matérias que nunca tinham sido discutidas, porque afrontou lóbis e interesses instituídos, porque provou que a sua acção se estendia muito para além da caricatura abjecta com que, injustamente, o caracterizavam. Rir deixou de ser o melhor remédio e começaram os ataques.
Disse o semanário Expresso na sua primeira página: “O PAN quer tirar os animais dos provérbios”. Este é um dos tristes recursos do novo jornalismo, uma espécie de esquizofrenia que chama para a capa o contrário daquilo que encontramos no interior. E ninguém resistiu.
Todas as televisões e comentadores resvalaram para um abuso interpretativo nunca visto, sem manifestarem o menor cuidado com o teor jornalístico, todos encavalitados em uma histeria colectiva, para mostrar indignação por um alegado ataque visceral do PAN aos provérbios de sempre. Se uns não surpreenderam, outros suscitaram-me verdadeiro espanto. Claro que, com um título bombástico como este, ninguém quis saber do que estava escrito na reportagem. Já não era necessário.
A agenda dos detractores ficou cheia, e logo suscitaram um coro de indignação contra um “fascismo do politicamente correcto.” Seguiram-se as televisões que, mesmo com o esclarecimento do partido, continuaram a enfatizar a colagem do PAN à iniciativa da PETA. E daí surgiram os artigos de opinião, os comentários inflamados e os post nas redes sociais, todos a expelirem, mais do que fel, insipiência intelectual.
Porém, no interior, o mesmo jornal aponta num sentido que desconstrói o próprio título: “ONG internacional quer alterar expressões anti animal”. Ora, sabendo que o PAN não é uma ONG, ficou à vista o pontapé nos princípios deontológicos que regulam a nobre actividade do jornalismo.
Daí para a frente a notícia corre na onda da contradição, mas sem constrangimentos de maior, porque continua a presentear o leitor com um dado que, aparentemente, não foi considerado no momento da construção do título: Afinal não é o PAN; é uma ONG. Essa ONG internacional é a People for the Ethical Treatment of Animals (PETA).
E em relação ao PAN, a própria notícia esclarece: “Avançar para qualquer tipo de iniciativa legislativa está fora de causa”. Por conseguinte, resgatando o sentido deontológico do texto, o título deveria ter sido algo do género: “PAN não vai propor fim de provérbios anti animal”. Mas apesar desta revelação, o jornal investe novamente na colocação das acções da PETA nas mãos do PAN, como que a plantar provas na cena do crime, dando para a análise do leitor uma tabela com provérbios e as respectivas alternativas sem “linguagem anti animal”, como “Pegar o Touro pelos cornos” que é substituído por “Pegar uma flor pelos espinhos”, entre outras férteis soluções, omitindo que a autoria é da PETA, e que é possível consultar o exercício na página da organização (https://www.peta.org/features/what-peta-really-stands-for/).
O PAN aceitou o desafio de abordar o tema e acabou por enaltecer, conceptualmente, a pertinência do debate, aliás, que já havia surgido em outras ocasiões e em outros países, especialmente em relação ao primeiro ciclo escolar, algo que, um bom jornalista teria aferido.
No Brasil, várias escolas já abordaram a temática em torno das letras de algumas canções infantis tradicionais, que são parte do folclore brasileiro, incluindo a célebre “Atirei o pau ao gato”. O mesmo debate estendeu-se à literatura, e deu-se especialmente em torno da obra “Caçadas de Pedrinho” (1933), do autor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), que foi várias vezes apontada como detentora de um certo preconceito e estereótipo racial, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia, que encontramos nas estórias do “Sitio do Pica-pau Amarelo”.
Antes disso, já os Estados Unidos discutiram a pertinência de adoptar no programa escolar a obra infanto-juvenil “As aventuras de Huckleberry Finn”, o clássico escrito por Mark Twain e que Ernest Hemingway considerou como o marco inicial da literatura norte-americana moderna. Este livro chegou mesmo a ser censurado e banido das listas de leitura escolares, não só pelo teor racista de que muitos acusaram o autor, mas por considerarem que a personagem Huck Finn, que não gosta de ir à missa, nem de rezar, nem da escola e ajuda um escravo a fugir, ofende a religiosidade, os valores familiares, a moral e, na altura, a sensibilidade política. E sobre este assunto existem vários posicionamentos, desde os que rejeitam a continuidade destas obras no programa escolar, até aos que defendem que se deve sempre priorizar a boa literatura e as versões originais, e que estas narrativas devem ser devidamente explicadas e historicamente contextualizadas e não subtraídas do cânone.
Por conseguinte, o debate existe há muito tempo, e o PAN não se esconderá dele, porque em uma democracia não existem assuntos proibidos e ninguém pode colocar-se acima da crítica.
Cada um responderá, seguramente, por tudo o que diz e por tudo o que faz. Mas todos ganhamos com o debate e ninguém deveria ver esta reflexão com melindre ou hipocrisia.
O PAN é genuíno e arejado, e não é difícil reconhecer que talvez seja detentor de uma certa ingenuidade, por estar sempre disponível para colaborar em todas as reflexões, mesmo nas mais complexas ou sobre aquelas que nunca ousamos abordar; ingenuidade por nunca sentir a imperativa necessidade de ler nas entrelinhas do canto mais degradado do meio político; ingenuidade por não saber ainda descodificar o real propósito do jornalistazinho sabichão, por não estar refém da dicotomia esquerda/direita, por pensar que cada microfone é segurado por uma integridade inviolável, por defender causas globais e não apenas um lado. Envolto nessa candura política, o partido acede sempre participar em todos os debates, sem medo ou preconceito, nunca antecipando escrutínios sobre o trabalho dos jornalistas que solicitam a sua colaboração.
Talvez seja tempo de aplicar uma postura mais defensiva, uma estratégia mais preventiva em relação à comunicação social em geral, e em particular àqueles jornais e televisões que apenas funcionam como rastilho, mas que não conseguem ir para além da ficção e do murmúrio.
O que esteve sempre em causa não foi a reflexão sobre a iniciativa da PETA ou a posição do PAN sobre o assunto, nem sequer o conteúdo da notícia. Mas apenas um título, um chavão errático e preconceituoso, com o único intuito de descredibilizar o PAN e que gerou um movimento polémico baseado na predisposição que um certo tipo de comunicação social tem para assumir-se como o “Macaquinho de imitação”, que nunca quer saber da lição.
* Membro da Assembleia Municipal de Aveiro eleito pelo PAN.