A China, os seus problemas e porque isso nos deve preocupar

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A economia chinesa está a passar por dificuldades. Curiosamente, na situação atual cruzam-se dois efeitos, um conjuntural (que seria a priori positivo) e outro estrutural que sabíamos negativo e que haveria de se manifestar, mais dia menos dia.

Por José Figueiredo *

O lado conjuntural resulta do levantamento das duríssimas restrições da política de covid zero que a China colocou no terreno e que levou, por exemplo, ao fecho brutal de cidades como Xangai. O que se antecipava era que a abertura da China pós-covid daria lugar a uma enxurrada de consumo privado que colocaria a economia a bombar em todos os cilindros. Mas não é isso que está a acontecer, pelo contrário.

Os dados mais recentes mostram que as vendas a retalho em julho progrediram em base anual 2,5% e que a produção industrial terá aumentado cerca de 3,7%.
Não seriam números maus em muitas geografias, contudo, para a escala dos crescimentos a que a China nos habituou são registos muito pobres.
O mês de julho viu também as exportações e importações cair próximo de 15% e, pior que tudo, a China está a experimentar algo que não conhecia – a deflação. O índice de preços no consumidor entrou em negativo em julho, coisa que os chineses já não viam desde os tempos que se seguiram à turbulência da crise financeira de 2008/2009.

Não é fácil perceber a situação atual. Não se duvide que a abertura pós-covid empurrou a economia para cima – as pessoas podem ir agora a restaurantes, cinemas, viajar… O problema é que, aparentemente, os fatores estruturais negativos estão a dominar. O modelo de crescimento chinês assentava em pilares que já mostravam sinais de esgotamento ainda antes da crise do covid. Quase um terço do crescimento chinês vinha do imobiliário e, em boa parte, do imobiliário residencial.

O boom do imobiliário chinês foi alimentado por um crescimento da dívida, que ameaçava tornar-se explosivo. As autoridades, em nome da estabilidade financeira, colocaram limites apertados ao endividamento dos promotores imobiliários, com a famosa política das três linhas vermelhas. O maior deles, a Evergrande, foi o primeiro a cair, agora, também o segundo maior do setor privado, a Country Garden, está em grandes dificuldades.

Desde pelo menos o início de 2022 que, quer as vendas de imobiliário, quer as novas construções, apresentam variações negativas muito pronunciadas. No caso das novas construções a taxa de variação (em m2) mantém-se na casa dos -20%, no caso das vendas, ultimamente a taxa de queda tem moderado um pouco, mas ainda anda por cima dos -5%.
O segundo motor, as exportações, também parece pouco promissor. A procura global não está propriamente dinâmica, a concorrência interasiática é cada vez maior ao mesmo tempo que as políticas de reindustrialização do ocidente, aos poucos, vão fazendo o seu caminho. Finalmente o terceiro motor, o investimento público, nomeadamente dos governos provinciais e locais, também já não tem tração porque estas entidades estão muito endividadas e a principal fonte de financiamento, a venda de terras para promoção imobiliária, já não funciona por motivos óbvios – simplesmente não há compradores.

A desesperada esperança seria o consumo privado. O problema é que o putativo empurrão da despesa das famílias teima em não dar sinais de vida. Tempo difíceis, portanto. Porque é que isto nos interessa? Por muitas razões das quais vou sublinhar duas.

A primeira é que a China tem sido (e continuará a ser) o maior contribuinte para a dinâmica da economia global. Durante muito tempo a China assegurou mais de um terço do crescimento da economia global. A China é de longe o maior operador em muitos mercados de matérias primas e, da saúde desses mercados, depende o bem-estar de muitos milhões de pessoas nos países que as produzem. Geografias como o Brasil, a Argentina, a Austrália e muitos países africanos podem passar mal se a economia chinesa arrefecer significativamente.

A segunda razão, quiçá, mais importante para nos preocuparmos é que, gostemos ou não, a China é um parceiro indispensável para a transição energética e para o controlo da catástrofe ambiental.

Desde logo porque a China é o maior poluidor mundial – sem descarbonizar a China não descarbonizamos o mundo. Depois porque algumas das tecnologias básicas da descarbonização estão fortemente dependentes das cadeias de valor centradas na China. Para uma transição energética bem-sucedida são necessários painéis solares eficientes e baratos. Na base dos painéis solares estão os filmes de silício policristalino os quais são produzidos na China, em grande parte na província de Xinjiang, a região de maioria uigur onde a violação dos direitos humanos é moeda comum, recorrendo a processos tudo menos limpos e, com certeza, a trabalho escravo ou perto disso.

É óbvio que não é impossível substituir grande parte da produção chinesa de filmes de silício policristalino. A Austrália, por exemplo, tem as matérias primas, o conhecimento e o capital para o fazer. Contudo, sobram dois problemas. Construir uma fábrica e colocá-la operacional leva cerca de 6 anos e, no final, com as condições do ocidente, o custo do produto seria sensivelmente o dobro do custo na China.
Também as baterias são fundamentais no processo de transição.
Atualmente as baterias de ião de lítio são as mais avançadas que é possível produzir em escala industrial – são elas que alimentam os nossos telemóveis e os automóveis elétricos. Estão longe de ser perfeitas quer em termos de densidade energética ou de segurança e, para além disso, consomem, para além do lítio, metais nobres de extração difícil e cara.
Existem basicamente em duas variantes. Inicialmente a variante dominante usava, para além do lítio, níquel, manganês e cobalto (NMC) no processo produtivo. Estes metais são problemáticos porque os recursos estão concentrados em geografias muito específicas, algumas pouco recomendáveis como a República Democrática do Congo no caso do cobalto ou a Indonésia no caso do níquel.

Os cientistas conseguiram criar uma segunda variante que usa nos cátodos metais menos escassos a nível global, mais fáceis de extrair e mais baratos, nomeadamente, ferro e fósforo (LFF). A China domina totalmente as cadeias de valor no setor das baterias, produz cerca de 75% das baterias NMC a nível planetário, e na variante LFF a quota da China é de 99%!

Resumindo, independentemente do que possamos pensar do sistema político chinês, a China tornou-se incontornável. Quando se trata de crescimento a nível global ou de transição energética nada é exequível sem a cooperação da China. Durante a pandemia ficámos em pânico quando nos apercebemos de que a quase totalidade da produção mundial de ventiladores estava localizada na China. O ocidente, em particular os Estados Unidos, vêm a China como um rival perigoso. Sem dúvida que deixámos chegar longe demais a dependência da China em muitos domínios de produção industrial.

A ideia de dissociar as economias ocidental e chinesa é obviamente inviável, contudo, uma política de redução progressiva dos riscos de sobredependência do império do meio parece-me avisada. Pelo caminho há custos a pagar. Produtos mais caros no ocidente e turbulência na segunda maior economia do mundo são coisas que dispensaríamos, contudo, são porventura inevitáveis. Como diria um conhecido político nosso conterrâneo: “é a vida!”

* Economista. Artigo publicado originalmente no site Solidariedade.pt.

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