Tenho de o escrever. E tratando-se de coisa jurídica, escrevo-o como quem, durante longos anos, tem sido promotor social em variados setores, menos na deficiência. É um certificado mesmo. Aqui vai: há muitos anos que sinto que a cooperação está doente, se, alguma vez, esteve de plena saúde. Ou seja, a relação de cooperação entre Estado e Instituições Particulares de Solidariedade Social, apesar dos esforços que se têm vindo a fazer, continua com algumas debilidades que afetam, particularmente, a tão propalada autonomia das instituições, mas que, na prática, não ser isso que acontece.
Por Eugénio Fonseca *
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O histórico da doença é relativamente simples: em 2007 agarraram no regime de contraordenações, que se aplicava apenas a estabelecimentos lucrativos, e deu-se um episódio agudo: decidiram que se ia aplicar também aos não lucrativos. Este episódio não foi devidamente tratado, tendo como sequelas o surgimento de portarias cada vez mais inconstitucionais, começando em 2011 com a fixação, pela primeira vez, de quadros de pessoal obrigatórios. Em 2014, um novo episódio agudo viria a iniciar um declínio de saúde mais acentuado, com a revisão do montante das coimas de contraordenação e a moralização de serviços de fiscalização que há anos aguardavam pela afirmação da sua relevância.
Não é seguro que se trate de quadro crónico, por isso convém investigar as causas desta doença para receitar alguma terapia.
Comecemos pela ausência de responsabilidade do Estado. Diz a Lei que a relação de cooperação assenta na partilha de responsabilidades. Não é o que acontece: as IPSS são punidas, mesmo quando o Estado falha no apoio técnico.
De seguida, a imposição do poder do Estado. Diz a Lei (e bem ou seria inconstitucional e ilegal) que “o apoio do Estado não pode constituir limitação ao direito de livre atuação das instituições” (v. 4.º/4 do DL n.º 119/83). Mas toda a gente parece convencida que, como o Estado paga, o Estado manda.
Depois, o acompanhamento. Diz a regulamentação que o apoio técnico é obrigação do Estado, enquanto devedor. Mas nas ações parece que são as IPSS as devedoras de serem acompanhadas. Chegamos mesmo ao absurdo de haver checklists, para não haver dúvidas de que estamos a contabilizar o estado da dívida.
Finalmente, as portarias. Textos tão pobres que chegam mesmo a usar termos como “rescisão”, coisa que, segundo alguns juristas, inexiste no Direito português há décadas. No fundo, trata-se de uma régua que mede coisas diferentes, como se fossem iguais, sancionando tudo o que sai de diferente. Até aqui, o Estado se desresponsabiliza de apoiar: sendo todas iguais, não é preciso apoiar, basta sancionar o que é diferente.
E depois as sanções. Como é que se aplica coimas a quem só falha por falta de apoio técnico do Estado?
Finalmente, a fiscalização. Em vez de encontrar e punir casos graves excecionais, estabelece-se um relacionamento persecutório com instituições por formalismos, quantas vezes irrelevantes, quando essa relação deveria ser mais um acompanhamento técnico-pedagógico.
Por esta altura o leitor já descobriu que por erro ou excesso de regulação se paralisa, muitas vezes, a ação. Esta situação gera um mal que é a falta de liberdade. E também já concluiu que um setor que apoia pessoas, se arrisca ficar paralisado, arrisca ficar seriamente doente. Estou, plenamente, convencido de que não há outra terapia que não seja a de garantir precisamente que ele se mexe, é reconhecer-lhe a sua liberdade. A cura é a autonomia.
E isso começa com a aceitação de uma noção básica: juridicamente, as Instituições Particulares de Solidariedade Social da importância que estas têm na sociedade, sendo-lhes reconhecido um estatuto constitucional relevante e devem ser respeitadas nessa medida. Basta recordar que, na Constituição da República Portuguesa, a liberdade de ação das IPSS resulta do elenco dos direitos fundamentais.
No diálogo entre Estado e Setor Social e Solidário, em particular na sua forma normativa, é tempo de se entender as normas fundamentais da República Portuguesa e se entenda cooperação como igualdade entre as partes e que os representantes do Estado não pugnem tanto pelo exercício desmedido de autoridade e comece a compreender que é devedora de milhares e milhares de mulheres e de homens de respeito institucional, mas acima de tudo de apoio, técnico e financeiro, de reconhecimento e de agradecimento. Reitero que as situações dolosas descobertas, devem ser entregues à Justiça e por esta bem responsabilizadas.
Aqui está a solução: mais respeito institucional para as IPSS, mais apoio técnico e financeiro para as suas respostas sociais e, tudo isto, como reconhecimento e acompanhado, sempre, de agradecimento por parte do Estado e das suas entidades envolvidas.
A este propósito, lembro que, em cumprimento do programa do atual Governo e do Compromisso para a Cooperação, foi constituído um Grupo de Trabalho para a definição de uma fórmula de financiamento para cada resposta social o que, na prática, abre a discussão sobre o atual modelo da cooperação e a necessidade de inovar usando exemplos que estão no terreno e que deviam ser avaliados, talvez melhorados, mas aproveitados como experiência.
A cooperação está doente, repito.
E para quem lhe nega a cura, se estiver a ler estas linhas, é natural que sinta algum ou total desacordo. Pode pensar que procuro fragilizar a defesa da administração pública. Não é nada disso. Para além de estar a fundamentar-me na Lei Fundamental do nosso país e, teoricamente, num princípio que dá solidez a qualquer regime democrático que é a subsidiariedade, eu tenho assistido a algumas iniciativas das instituições públicas, representadas pelos seus técnicos, em que é notória o desrespeito pela a autonomia das IPSS em causa e, em termos de cooperação, o resultado para o Estado não é brilhante.
E assim termino dizendo: é do interesse de todos curar a cooperação, mas é, em primeira linha, interesse do Estado fazê-lo.
* Artigo publicado no site Solidariedade.pt.
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