A arte de chutar pró lado

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lancha CITA1 da Comissão Municipal de Turismo de Aveiro.

Numa tarde de Primavera de meados dos anos sessenta, a lancha CITA1 da Comissão Municipal de Turismo de Aveiro efectuou o transporte de um grupo de uma vintena de campistas franceses, que acompanhei na qualidade de Guia, até à Casa Abrigo, onde existia o cais de acostagem mais próximo do parque de campismo da Orbitur, situado na Mata de São Jacinto.

Por Diamantino Dias *

Na viagem de regresso, sem passageiros, já dentro do Canal das Pirâmides, vinha sentado à popa e apercebi-me de algo azulado, entre-duas-águas e por estibordo, que me pareceu ser uma pessoa. Alertei o timoneiro, que deu à ré, e peguei num dos croques. Enganchei o corpo pelo cinto e tentei tirá-lo da água. Como não consegui, pedi ajuda ao homem do leme que, impressionado pela presença da morte, não foi capaz de a prestar. Chamei o ajudante de manobra que, como era seu costume, dormitava à proa. Juntos, retirámos o cadáver para dentro da embarcação.

Tratava-se de uma criança descalça, com um vestidito azul. Pegámos-lhe pelos pés, deitou uma aguadilha esbranquiçada pela boca, deitámo-la na cabine, cobrimo-la com um casacão de oleado e corremos as cortinas, porque nos estávamos a aproximar do casario da cidade. Mandei atracar na lingueta da rua do Clube dos Galitos, onde acostavam as lanchas da carreira de São Jacinto, defronte da rua José Rabumba, com a intenção de me dirigir ao edifício da Câmara, na Praça da República, para participar o sucedido.

Eis senão quando, vejo o Subdelegado de Saúde, cuja presença era oficial e obrigatoriamente solicitada em casos semelhantes. Chamei-o e entrou na lancha. Disse-me o que eu já sabia: a menina estava morta. Perguntei-lhe o que havia de fazer. Respondeu-me que, dado o corpo ter sido encontrado na Ria, era um assunto para ser comunicado à autoridade marítima.

Ordenei que recolhêssemos ao hangar, situado na Malhada da Pêga, nas traseiras do antigo campo de Andebol, onde mais tarde foi construído o Pavilhão do Beira Mar, recentemente imolado na pira futeboleira. Lá chegado, liguei para o Posto de Turismo, na altura instalado na Avenida do Dr. Lourenço Peixinho, contei à minha colega o que se estava a passar e pedi-lhe para passar a linha de rede para o meu suplementar. Curiosamente, nunca mais consegui falar com ela, por mais que tentasse. Liguei para a Capitania do Porto, tendo sido informado pelo senhor Comandante — por inerência do cargo pertencia à Comissão Municipal de Turismo — que nada poderia fazer, dado não ser um caso da sua competência, sugerindo-me que contactasse os Bombeiros ou o Hospital.

Assim fiz. Dos Bombeiros, deram-me conhecimento que as ambulâncias só estavam autorizadas a transportar feridos ou doentes, pelo que não o poderiam fazer com cadáveres.

No Hospital, fui atendido pelo porteiro-telefonista a quem solicitei, após ter dito o que tinha acontecido, que fosse mandada uma carreta de transporte de defuntos, para levar o corpo para a casa mortuária, o que não seria difícil, dado que, não só a distância a percorrer era pequena, à volta de 400 metros, mas também o arruamento, antiga rua do Cabouco, actual avenida Calouste Gulbenkian, à época quase não tinha habitações, exceptuando o Bairro da Misericórdia que até era, e é, afastado  da via. Foi-me dito que iria contactar o médico de serviço e assim fez. Aconteceu, porém, que se  esqueceu da cavilha do PBX na posição intermédia, pelo que ouvi o referido licenciado em medicina responder, crua e depreciativamente, que o Hospital não era nenhuma empresa de transportes.  

Interrompo a narração para dizer, primeiro, que aquela resposta criou em mim uma forte antipatia pela pessoa em questão e, segundo, que, felizmente, as voltas da vida me propiciaram a ocasião para lhe manifestar o que por ela sentia, opinião essa acrescida com juros de mora.

Entretanto, o tempo passava e começaram a aparecer, junto ao hangar, os familiares da criança. Tratava-se dos Moles, numerosa família oriunda da Gafanha Baixa, concelho da Murtosa, com fama de gente desordeira e perigosa, que vivia em barracas, nos terrenos situados entre a ponte de São João e a antiga Lota. Falei com o pai da criança a quem permiti ver a filha; a mãe estava no Hospital a recuperar de uma operação. Ele disse-me que a menina deveria ter estado a brincar sozinha junto ao Canal de São Roque; teria caído à maré e afogou-se, porque não sabia nadar. Esta incapacidade pode parecer estranha, mas era frequente em pessoas que não só sempre viveram junto à Ria, mas até nela trabalhavam. Assim sendo e porque se estava na vazante, a menina tinha estado muito poucos minutos dentro de água. Manifestou-me o desejo de a levar, de imediato, para a Murtosa, para ser sepultada na campa familiar, mas não o autorizei, sem previamente falar com uma autoridade.

Telefonei para a PSP e, passado poucos minutos, apareceu um agente à paisana, de bicicleta, o qual desceu por uma pequena escada para a lancha – já se estava na finca da baixa-mar e a embarcação encontrava-se em seco. Examinou o corpo, com especial incidência na zona do pescoço, talvez à procura de marcas de estrangulamento, e disse, a mim e ao pai, que voltaria, mas que, entretanto, o cadáver não poderia ser nem retirado do local onde se encontrava, nem sequer tocado por ninguém.

Os ponteiros do relógio continuavam a avançar, já era noite, cada vez havia mais pessoas e não só familiares à porta do hangar, começando a criar-se uma certa confusão propícia a desacatos. O pai insistia em levar a criança, a tripulação da lancha queria ir para casa e eu, que, nessa altura, era treinador de todas as equipas de Andebol do Beira Mar, tinha treino de juniores, às 21H30, no campo contíguo.

Telefonei, de novo, para a Esquadra, instalada na Praça Marquês de Pombal, e disse ao graduado de serviço que eram nove menos um quarto e que, se às nove e um quarto não estivesse ninguém para manter a ordem e resolver o destino a dar ao cadáver, faria a vontade à família e chamaria um táxi. Aconselharam-me, viva e repetidamente, a não tomar essa decisão, porquanto estaria a assumir uma grande e grave responsabilidade que me poderia acarretar problemas. Insisti, informando firmemente que, às nove e um quarto, chamaria o carro de aluguer. E assim foi feito. A menina foi para a sua terra, amortalhada num lençol.

Sendo, nessa altura, uma pessoa bastante conhecida na cidade, dadas as funções oficiais e outras actividades que desempenhava, só viria a ser contactado, sobre este triste acontecimento, pelos pais da criança, para me agradecerem a intervenção que teria permitido que o corpo da filha tivesse sido rapidamente recuperado. Caso tivesse chegado ao Canal da Gafanha, do qual distava menos de 100 metros, e sendo a corrente de vazante muito forte, não me recordo se se trataria de uma maré viva, poderia ter ido parar muito longe, quiçá, saindo a barra. Da PSP, para não falar das outras entidades, até hoje, não tive nem novas, nem mensageiros.

Este conhecimento valeu-me, mais tarde, quando organizava as “Festas da Ria”, que incluíam “Corridas de Bateiras à Pá”, para arranjar a tripulação feminina que competia com a das salineiras que, no dia a dia, transportavam o sal dos barcos saleiros para os palheiros do canal de São Roque. Essa equipa vinha da Gafanha Baixa e tinha, como timoneiro, um familiar da jovem que esteve na génese desta história verdadeira.

Considerando as atitudes de todas as pessoas e entidades com quem contactei, tomei a seguinte decisão, que, felizmente, não tive de pôr em prática, no último mais de meio século. Se algum dia encontrar um cadáver, telefonarei aos Bombeiros, dizendo que, em tal parte, está uma pessoa ferida. Se, quando chegar a ambulância, me disserem que, afinal, não se trata de um ferido, mas de um morto, retorquirei que, não sendo médico nem profissional de saúde, não tenho conhecimentos que me permitam emitir opiniões definitivas sobre uma matéria nem sempre consensual.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)

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