E, subitamente, a montanha pariu um elefante. No dia 2 de abril Donald Trump apresentou, finalmente, a política tarifária sobre as importações americanas.

Por José Figueiredo *

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Na base dessa política estaria a chamada tarifa “recíproca”, a calcular país por país, a qual, supostamente, permitiria compensar as barreiras ao comércio, pautais e outras, que as diferentes nações usam para facilitar as exportações para os Estados Unidos e/ou dificultar as importações dos Estados Unidos.

A fórmula para chegar ao número mágico da tarifa “recíproca” é muito simples. Divide-se o déficit comercial americano com determinado país pelo volume de exportações desse país para os Estados Unidos e depois divide-se o ratio encontrado por dois.

Se um qualquer país exporta 100 para os Estados Unidos e de lá importa 50 tem um excedente comercial de 50. Divide-se 50 por 100 o que dá 50% e depois, para calcular o número mágico, divide-se 50% por 2, operação de que resulta uma tarifa “recíproca” de 25%.

Compreender este absurdo não é coisa para economistas, talvez os psicólogos consigam encontrar um qualquer racional para este imenso disparate.

Na base do dislate está uma ideia muito cara a alguns círculos trumpianos, de que a existência de desequilíbrios externos, deficits ou superavits, se deve a barreiras artificiais ao comércio, ou, mais prosaicamente, a batota deliberada e sistemática dos parceiros comerciais da América.

Como é evidente trata-se de ignorância grosseira. O deficit comercial americano tem muito pouco que ver com eventuais práticas desleais dos parceiros económicos, como sejam proteções pautais excessivas, desvalorização artificial da moeda ou subsídios, mais ou menos velados, a setores exportadores.

Tomemos um exemplo muito simples. Os Estados Unidos importam carros europeus, sobretudo no segmento de luxo, e exportam muitos poucos carros para a Europa. É verdade que a proteção pautal europeia nos automóveis é mais alta que a proteção americana o que pode dar algum fundamento empírico à reclamação de Donald Trump.

Contudo, não é a moderada barreira pautal europeia sobre os automóveis que impede que os carros americanos se vendam na Europa. Países como o Japão, a Coreia do Sul e mais recentemente a China exportam quantidades significativas de automóveis para países europeus não obstante a proteção tarifária europeia.

O problema dos carros americanos é que eles são pensados para o mercado local que é muito diferente do europeu a começar pelo enorme diferencial no preço dos combustíveis. Os europeus não compram carros americanos apenas porque não são compatíveis com os seus hábitos de mobilidade automóvel. A diferença pautal tem aqui um papel mais que marginal.

Como reconhece Stephen Miran, o atual chefe dos conselheiros económicos de Donald Trump, recuperando uma ideia velha de décadas do economista Robert Triffin, na base do deficit comercial americano está o facto de os Estados Unidos serem os emissores de dólares que são a principal moeda de reserva global e a mais importante moeda transacional no comércio internacional.

Trata-se de um enorme privilégio para os Estados Unidos, mas que vem com um custo. Como a procura por dólares não tem que ver apenas com os fluxos de comércio, mas resulta em larga medida do seu papel de moeda de reserva e de base de transações internacionais, a cotação do dólar estará tendencialmente sobreavaliada em relação ao que seria necessário para equilibrar a balança comercial. Calcula-se que o dólar tivesse de desvalorizar entre 30 a 40% para que o equilíbrio fosse alcançado.

Uma outra forma de ver que o deficit americano tem pouco ou nada que ver com questões pautais é quase meramente contabilística. Um país tem sempre deficit externo quando aquilo que os seus agentes económicos (famílias, empresas e estado) desejam investir é superior ao que desejam poupar. Acontece que a poupança interna americana é muito inferior ao investimento pelo que, enquanto a situação se mantiver, os Estados Unidos serão deficitários com o exterior.

Como o essencial do deficit americano não se deve à ausência de reciprocidade pautal, nem a batota deliberada e sistemática dos parceiros comerciais, aumentar brutalmente as tarifas de importação não vai, obviamente, resolver rigorosamente nada.

As verdadeiras soluções poderiam ser uma desvalorização significativa e internacionalmente concertada do dólar como parece defender Scott Bessent, o atual secretário do tesouro da administração Trump, á imagem dos famosos Plaza Accords dos anos oitenta, ou a resolução dos desequilíbrios macroeconómicos internos aos Estados Unidos o que implica uma redução da procura interna, a começar pela procura do estado que tem corrido nos últimos anos deficits colossais e que são insustentáveis.

Infelizmente nenhuma das soluções que poderiam ser efetivas está disponível. Depois da acrimónia gerada pela administração Trump, com a sua absurda e agressiva política tarifária, não se vê onde esteja o clima para gerar um consenso internacional para uma desvalorização concertada e não disruptiva do dólar.

Por outro lado, também não se vê como se possa resolver o tema do deficit público americano quando o que Donald Trump prometeu foi uma redução de impostos e, por outro lado, não serão com certeza as acrescidas receitas aduaneiras que vão salvar o dia.

O aumento das tarifas aduaneiras americanas não vai resolver rigorosamente nada do problema de fundo, mas tem o potencial de fazer muito mal à América e ao mundo.

Os preços vão subir, provavelmente dificultando o caminho descendente das taxas de juro e não é de excluir uma recessão, quer nos Estados Unidos quer nos países mais afetados pelo aumento brutal das tarifas.

As reações dos mercados foram as que seriam de esperar embora com uma notável exceção.

As bolsas caíram a pique com receio de um eventual episódio recessivo, os preços das obrigações do tesouro americano subiram (o que é o mesmo que dizer que as taxas de juro implícitas baixaram) porque se transformaram no ativo de refúgio, mas curiosamente o dólar desceu.

Não costuma ser assim – em tempos de turbulência o dólar tem tendência para apreciar dado que é visto como o refúgio mais seguro.

Confesso que ainda não encontrei qualquer justificação razoável para esta anomalia.

Contudo, não é de excluir que este comportamento inabitual do poderoso dólar seja um sinal dos tempos. Porventura, o mundo como o conhecemos nas últimas décadas chegou ao fim e o que aí vem, infelizmente, pode não ser bonito de se ver.Uma guerra só com vencidos…

* Economista. Artigo publicado originalmente no jornal online Solidariedade.pt.