No dia em que passam 531 sobre a morte da que é, desde 1965, a Padroeira da cidade e da diocese de Aveiro, a Princesa Santa Joana, foi apresentado brevemente o códice, o manuscrito, cujo conteúdo em grande parte se apresenta hoje ao público na obra “Memorial da Infanta Santa Joana e Crónica da Fundação do Convento de Jesus”.
Por José António Rebocho Christo *
A sua autenticidade ou antiguidade tem sido objeto de vários estudos assim como o valor e crédito, religioso e histórico, das narrativas que contem. É proveniente do cartório do Convento das dominicanas aveirenses, onde tinha o número n.º872, atualmente uma das mais valiosas peças das coleções do Museu de Aveiro/Santa Joana, senão a mais valiosa pela unicidade e grandeza da informação que encerra.
Materialmente trata-se, como foi referido, de um códice, um livro manuscrito com Letra gótica a tinta sépia e vermelha sobre cuidadas folhas de pergaminho, organizado em cadernos, solidários entre si por cosedura, e encadernação com pranchas de madeira forradas com pele e gravadas a ferros quentes, que lhe conferem uma decoração típica, geometrizante, situável nos séculos XV e XVI, datação que outros códices produzidos, assinados e datados pelas monjas do afamado scriptorium aveirense de Jesus certificam. É composto por duas partes. A primeira, em pergaminho, contém a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro, o Memorial da Infanta Santa Joana, o Memorial das Religiosas que professaram e faleceram no Mosteiro de Jesus e o Memorial das servidoras que entraram e faleceram no mesmo mosteiro. Esta parte, do antigo Cartório do Convento, tem o texto a duas colunas, com iniciais capitais vermelhas, conforme nos apresenta a obra que se apresenta, algumas com filigrana a sépia ou violeta. Tem ainda iniciais a sépia, realçadas a amarelo, e quase todos os cadernos apresentam reclamos, ou seja no final de cada página está a palavra, frase ou parte dela com que inicia a página seguinte.
O manuscrito terá sido em grande parte escrito na mesma década, entre sensivelmente 1513, ano detetável no discurso, e 1525, e o Memorial tem sido atribuído a Marguarida Pynheira (n. c.1461- m. 1528)., sendo o livro depois preenchido sucessivamente com os nomes das religiosas que professaram ou faleceram no convento até 1874.
No verso da segunda guarda volante anterior contém a anotação: “A vida d’a Santa Princeza./ começa a pajina 48.” Foi foliotado a tinta sépia com numeração árabe, por duas vezes, no canto superior direito.
O seu conteúdo foi transcrito em 1939 por António Gomes da Rocha Madahil, e publicado pelo Prof Francisco Ferreira Neves; posteriormente, em 1963, surge na monumental obra “O Mosteiro de Jesus de Aveiro”, pelo jesuíta Padre Doutor Domingos Maurício Gomes dos Santos. São obras raras, de acesso menos fácil e as transcrições obedecem a rigores paleográficos e de impressão que as tornam de difícil leitura, o que com esta edição se procurou obstar, tornando-a mais acessível sem se beliscar o conteúdo.
Nele se destaca a grande fonte para o conhecimento da Princesa Santa Joana, o seu Memorial (MADAHIL, 1939), o qual, sendo essencialmente obra hagiográfica, não nos deixa, e por tudo o que hoje conhecemos na esfera da ciência da história, grandes hesitações em relação à veracidade dos factos relatados que, no essencial, a História ratifica, apesar de os cronistas oficiais serem muito parcos nas referências a este personagem. Não é uma Crónica, como a narrativa da Fundação que lhe precede, mas sim, e firmado: um Memorial, o “por em lembrança uma cousa” e “cousa que traz outra a memoria” (Rafael BLUTEAU, 1712-13), um relato onde se anotam coisas que é preciso lembrar.
Em relação às fontes e sua problemática constata-se que desde Marques Gomes, que publica, em 1879, o “Esboço Biográfico de D. Joanna de Portugal”, são levantadas várias questões acerca da historicidade de muitos elementos que, nos textos hagiográficos, eram veiculados como correspondendo à existência real da Princesa, e sobre os quais se constrói a sua biografia e iconografia, baseando-se essencialmente nas objeções que já havia anotado D. António Caetano de Sousa na “História genealógica da Casa Real”, em 1737.
Assim como para os três casamentos propostos, cuja veracidade dos atores até é atendível, caso eventual de Ricardo III de Inglaterra, igualmente se questionam, em termos de consistência histórica: o título de princesa jurada em cortes e o seu uso perpétuo; as motivações para a vida claustral; e também a regência que lhe é atribuída, por exemplo por Frei Luís de Sousa, em 1471, aquando da campanha de Arzila em que participaram o Pai e único Irmão.
Concordam os cronistas do reino em relação ao manuscrito aveirense nos seus atributos de beleza, que o seu retrato (Col. Museu de Aveiro, inv. 1/A) evidencia, e de bondade e de “onesta e muy virtuosa vida”, como refere Rui de Pina. De forma sintética podemos afirmar que a visão dos cronistas, quer Rui de Pina (1440-1522), quer Damião de Góis (1502-74) ou Garcia de Resende (1470-1536) pouco contribuem para a história e consequentemente a biografia, a hagiografia e iconografia da Princesa, levantam sim algumas questões quando cotejados com os seus biógrafos religiosos, primando por escassíssimas alusões à Beata. Garcia de Resende chega a ser quase cruel quando se refere à morte de D. Joana que, por coincidência, estragou o lustre do casamento do Príncipe D. Afonso, filho de D. João II. (RESENDE, 1977)
Assim temos na primeira parte do códice, segunda na presente edição, “o nascimento, principio e fundamento do mosteiro e casa de Jesus nosso senhor desta vila de Aveiro que pessoas o fundaram nos edifícios e casa” que respeita à fundação do mosteiro e onde se relatam as razões da sua edificação por D Brites Leitão, a sucessão das obras, primeiras e veneráveis habitadoras, etc; um relato histórico, uma crónica, em que os acontecimentos são expostos em ordem cronológica, normalmente sem comentários do autor. Um documento magnífico que descreve o tempo entre as circunstâncias que levam à construção do convento e a entrada da Princesa, em 1472.
Quanto a Margarida Pinheira, a possível autora do memorial da muito excelente princesa e muito virtuosa Senhora a senhora Infante dona Joana nossa Senhora filha do mui católico e cristianissimo rei dom Afonso V e da Senhora rainha dona Isabel sua mulher, como defende Rocha Madahil e se subscreve, e conforme inscrição marginal no códice, foi uma das primeiras religiosas do convento, sobrinha de Frei João de Guimarães, frade dominicano do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia de Aveiro, confessor de D. Brites Leitão e figura determinante para a fundação do Convento de Jesus.
Todo o relato feito pela(s) autora(s) é presencial, no caso de Soror Margarida, esta habita o convento a partir de 1467, encontrando-se referências a cenas que a relatante viu e assistiu, repetindo-se que “vy e ouvi” ou mesmo “quem vio a mayor parte” ou ainda “Deus sabe que eu que esto escrevo digo verdade, porque cõ meus olhos a vy e com minhas proprias orelhas ouvy”.
Rocha Madahil, depois de elencar as fontes disponíveis é cauteloso na atribuição a Margarida Pinheira que, no entanto, lhe parece a que melhor que se pode sustentar, e na nossa perspetiva é o mais consistente, mais razoável e passível de ser autorizado pelas fontes, adicionando, como eventual coautora, Isabel Luís, tendo o códice recebido certamente contributos diversos de várias das contemporâneas de D. Joana, entre as quais D. Maria de Ataíde, filha da fundadora. É o documento em que se alicerçou todo o seu processo de Beatificação, a 4 de abril de 1693, pela Bula Papal de Inocêncio XII, “Sacrossancti Apostolatus cura”. Existem, no Arquivo Secreto do Vaticano os processos organizados para a causa da sua beatificação, como o Processo Ordinário, corrido em Coimbra, e iniciado em 1686, no qual aparece compulsado o de 1626, no qual várias testemunhas atestam a antiguidade do códice e inclusivamente a autoria, afirmando que a autora, pelo menos do “Memorial”, é Margarida Pinheiro “pela tradicam que ha como por aver ainda neste convento Religozas que a tratarão em vida e outras que conhecerão, e viverão com a ditta Margarida Pinheira”.
Em termos de textos impressos, estes não acrescentam novidades substantivas em relação ao “Memorial”, cujo teor seguem de perto, porém existem também, em número significativo e até aos nossos dias. Destacamos as mais antigas, com a obra de Frei Nicolau Dias, “Vida da Sereníssima Princesa Dona Ioana” (Lisboa, 1585), a primeira biografia impressa da filha de D. Afonso V; e neste mesmo ano a “Crónica da Ordem dos Pregadores” de Frei António de Sena (Paris) ou as “Histórias de São Domingos” de Frei Luís de Sousa. Se a grande maioria dos autores respeitam o “Memorial”, outros o romanceiam como tem sido relatado por vários investigadores, caso de La bienheureuse Jeanne de Portugal et son temps, de Beloc, editada em Paris no final de oitocentos e dedicada à Rainha D. Amélia.
Esta nota, se melhor mérito não tem, pelo menos certifica que o conteúdo do texto produzido em Aveiro tem uma sobrevida secular, espalhando não só no Reino de Portugal, como em Castela, França e Itália os elementos que, ao mesmo tempo que difundiam o seu modelo espiritual e de comportamento.
Cumpre ainda destacar, no séc. XX/XXI, os preciosos e rigorosos estudos dados amplamente à estampa pelo Monsenhor João Gonçalves Gaspar, lendo o códice à luz das durezas da História e da crítica, numa perspetiva que não conflitua com os enunciados que levam a determinar Joana de Avis como Beata, porquanto a apresenta como uma figura do seu tempo, inserida na espiritualidade quatrocentista e no conceito de santidade vigente, numa narrativa afastada da hagiografia, confirmando a benignidade que lhe é atribuída e reconhecemos como válida, crentes ou não, e analisando com profundidade todas as fragilidades históricas das narrativas que, no entanto, não desacreditam o “Memorial”. Nesta linha se têm vindo a produzir, no mundo universitário, algumas teses, com nota particular para o Doutor Gilberto Coralejo Moiteiro, com uma brilhante contextualização, e trabalhos de divulgação como “D. Joana Princesa e Santa” da Professora Cristina Pimenta, membro da Academia Portuguesa da História.
Assim a antiguidade do manuscrito, Crónica e Memorial, será inquestionável, a sua autoria levanta ainda questões mas seguramente foi produzido no scriptorium do convento de Jesus de Aveiro, com contributos de conteúdo de várias monjas contemporâneas quer da fundação quer da Princesa D. Joana, constituindo-se como fonte preciosa, à luz dos rigores da análise histórica contemporânea, e assumido como registo para memória futura e não, como acontece com as crónicas do reino, uma peça de encomenda com as fragilidades que facilmente lhes reconhecemos. É um privilégio guardarmos ainda hoje este códice e termos acesso ao seu conteúdo!
* Diretor do Museu de Aveiro Santa Joana.
Tanscrição adaptada de documento coleção do Museu de Aveiro/Sta. Joana produzido no Convento de Jesus entre os finais do século XV e início do século XVI, no qual se encontra o Memorial da Princesa Santa Joana, obra hagiográfica que serviu de base à sua beatificação em 1693 e hoje é o documento principal para a sua canonização (em curso). A segunda parte da obra, “Crónicas da Fundação”, é também um documento precioso que nos relata a construção, princípios e fundamentos do Mosteiro de Jesus de Aveiro.