200 anos de caminhos de ferro

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Stockton and Darlington Railway.

Este ano celebra-se o bicentenário dos caminhos de ferro, uma invenção revolucionária e profundamente transformadora que aproximou comunidades e territórios, ajudou a criar países, impulsionou economias e inspirou a inovação no mundo.

Por André Pires *

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Desde a primeira viagem da Stockton and Darlington Railway (S&DR), em setembro de 1825, a ferrovia cresceu e tornou-se numa rede global, símbolo da inovação tecnológica e elemento-chave no crescimento industrial e social. A viagem inaugural nos pouco mais de 40 km da S&DR demorou menos de três horas e representou muito mais do que um mero momento histórico: marcou o nascimento do transporte ferroviário moderno de passageiros e o início de uma nova era. Cinco anos depois inaugurava-se a célebre linha Manchester-Liverpool, onde foi usada a mais famosa das locomotivas a vapor – a Rocket, construída por George Stephenson.

Este feito mudou por completo o modo como passaram a ser transportadas mercadorias e pessoas, abrindo caminho para o domínio industrial britânico e de todos os países que, posteriormente e progressivamente, apostaram no comboio. O tiro de partida estava dado e assistiu-se a uma explosão na construção de infraestruturas ferroviárias, com novas linhas a ligar cidades, portos e as mais diversas economias, tornando-se vital para o comércio e nas grandes relações socioeconómicas globais.

O mundo assistiu a um período de grandes feitos, recordes, reformas e mudanças no setor ferroviário, que perduram no tempo e são demonstrativas da capacidade de contínua superação, transformação e modernização. E são inúmeros os exemplos. Assistiu-se ao surgimento dos grandes expressos ferroviários europeus e de várias ligações internacionais diurnas e noturnas, bem como à criação do Turismo como indústria. Os serviços ferroviários evoluíram não só com mais e melhores infraestruturas, mas também com a evolução dos níveis de conforto, rapidez e segurança dos comboios produzidos por uma indústria ferroviária em constante evolução. O setor tornou-se um farol de evolução tecnológica e catalisador de mudanças sociais.

Na década de 50 e 60 do século XX, a tração diesel já era dominante em vários países, a eletrificação uma realidade e, em 1964, o Japão tornava-se pioneiro na Alta Velocidade com abertura à exploração do Shinkansen, entre Tóquio e Osaka. 17 anos depois inaugurava-se, em França, a primeira linha de TGV (Train à Grande Vitesse), entre Paris e Lyon. Gradualmente e progressivamente potenciava-se a difusão desta tecnologia por vários pontos do globo. Estes países, a par de outros como a Espanha, Alemanha, Itália ou China, tornaram-se grandes referências neste segmento destacando-se este último que, desde 2020, é o país com a mais extensa rede de Alta Velocidade do mundo.

Em 1994 inaugurava-se o Eurotúnel, permitindo ligar o Reino Unido à Europa e, mais recentemente, em 2016, os 57 km do Túnel de Base de São Gotardo – o maior túnel ferroviário do mundo, que rompeu o maciço rochoso dos Alpes com o intuito de aproximar o Sul e o Norte da Europa. As alterações climáticas, as metas de neutralidade carbónica até 2050, a digitalização e a própria sustentabilidade do setor têm potenciado ainda mais a evolução tecnológica também através da proliferação de alternativas de tração ao diesel, além da eletrificação, tendo surgido nos últimos anos comboios movidos a baterias e hidrogénio. Destaca-se a apresentação mundial, em 2016, do primeiro comboio de passageiros do mundo movido a hidrogénio: a unidade regional Coradia iLint, da multinacional Alstom.

Pelo seu impacto como elemento diferenciador da História e do Mundo, em 1998, a UNESCO reconhece a importância da ferrovia ao declarar os 41 km da austríaca Linha de Semmering como Património da Humanidade – a primeira via férrea do mundo a receber esta classificação pela notável obra de engenharia que representa e que funciona de forma ininterrupta desde 1854.

Mas a história dos caminhos de ferro viveu igualmente períodos conturbados e de declínio, motivado não só por políticas públicas questionáveis, desinvestimento e consequente forte aposta em outros modos de transporte, mas também pela implementação de reformas que poderiam ter comprometido significativamente a própria existência da ferrovia. Em todas as partes do mundo, os países atuaram tendo em conta a existência de ferrovia, ou favorecendo-a como instrumento de políticas públicas ou desfavorecendo-a em benefício de outros valores.

Nesta matéria, e sem surpresa, o Reino Unido mostrou ser um bom exemplo, quase que representando uma escola e doutrina, que se propagou por outros países. A chegada de Richard Beeching à administração da British Railways, nos anos 60 do século XX, trouxe o famoso “Beeching Report”, documento que visava o encerramento de 8000 km de linhas e de 2363 estações que faziam parte, sobretudo, da rede regional e rural britânica. Se por um lado o objetivo era melhorar a contabilidade da empresa pública britânica, à custa da redução da rede e dos serviços ferroviários, por outro trouxe um período de contestação motivado pelas intenções e objetivos de acabar com o serviço ferroviário em várias localidades e regiões. Boa parte do plano foi consumado, realidade que afetou profundamente o desenvolvimento dos territórios, e os documentos que sucederam o “Beeching Report” até aos anos 80 mantiveram o mesmo denominador comum. Entretanto, e por pressão institucional e social algumas linhas e troços reabriram, dos quais se destaca a linha regional escocesa transfronteiriça Waverley Line que, ao fim de 47 anos de encerramento e abandono, viu os seus comboios regionais regressar, em 2015, e, atualmente, está em fase de discussão e estudo a sua reabertura até Inglaterra. A reconstrução da Waverley Line, igualmente conhecida como Borders Railway e uma das vítimas do “Beeching Report” é, até aos dias de hoje, uma das principais obras ferroviárias dos últimos 100 anos no Reino Unido.

Após quase seis décadas, e para recuperar perdas provocadas por uma época de encerramentos, em 2020, o governo britânico apresentou o Restoring Your Railway Fund, programa avaliado em cerca de 600 milhões de euros e que foi lançado para financiar projetos de reaberturas de linhas e troços. Ainda no Reino Unido, nos anos 90 assistiu-se ao fim da British Railways e à privatização dos serviços ferroviários. No entanto, três décadas depois voltam para a esfera da gestão pública através da recém-criada Great British Railways (GBR), entidade que ficará responsável pela gestão da infraestrutura ferroviária e dos serviços ferroviários.

Ao celebrarmos o bicentenário da ferrovia, há que refletir sobre estes dois séculos de conquistas inovadoras que transformaram a mobilidade e a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos, bem como aprender com os erros cometidos que condicionaram o progresso ferroviário e comprometeram o presente e futuro das regiões outrora servidas pelo comboio. Desde o seu modesto início, em 1825, até ao seu papel fundamental no panorama atual dos transportes, em particular no cumprimento dos objetivos de descarbonização do setor e das economias, a ferrovia tem sido uma força motriz para o progresso, inovação e coesão territorial, capaz de se adaptar à evolução dos tempos e à forte concorrência dos meios de transporte rodoviário e aéreo.

Hoje, a indústria ferroviária global consolida-se e impulsiona-se como um importante ativo económico ao apresentar um valor de mercado na ordem dos 201,8 mil milhões de euros impulsionado, sobretudo, pelos investimentos efetuados pela Europa Ocidental e cuja tendência é de crescimento (Unife, 2024). Na Europa, o impacto do setor ferroviário ao nível socioeconómico é significativo, representado por uma dimensão económica na ordem dos 182 mil milhões de euros e pelo contributo na criação de emprego: um milhão de postos de trabalho diretos e 1,3 milhões indiretos (CER, 2025).

O surgimento do transporte ferroviário contribuiu para tornar o Mundo mais pequeno, através de uma inovação técnica sem paralelo na História, e que nos dias de hoje continua a destruir o tempo e a encurtar distâncias. O modelo civilizacional tal como o conhecemos nasceu com a Revolução Industrial e dos Transportes. Na História ficará registado o grande feito e inovação que são os caminhos de ferro e a sua proliferação à escala global.

* Professor. Artigo publicado originalmente no site Transportes & Negócios.

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